Processo: 04B3354
Data do Acórdão: 19-10-2004
Relator: Salvador da Costa

Sumário:
1. O fim da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, não assente na ideia da titularidade de direitos por parte dos animais, é o de os proteger contra violências cruéis ou desumanas ou gratuitas, para as quais não exista justificação ou tradição cultural bastante, isto é, no confronto de meios e de fins ao serviço do Homem num quadro de razoabilidade e de proporcionalidade.
2. Os conceitos de violência injustificada, de morte, de lesão grave, de sofrimento cruel e prolongado e de necessidade a que se reporta o artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, significam essencial e respectivamente, o acto gratuito de força ou de brutalidade, a eliminação da estrutura vital, o golpe profundo ou extenso ou a dor intensa, a dor física assaz intensa e por tempo considerável, e a não justificabilidade razoável ou utilidade no confronto com o Homem e o seu desenvolvimento equilibrado.
3. A prática desportiva de tiro com chumbo aos pombos em voo, embora lhes implique prévio arrancamento de penas da cauda, a morte e a lesão física desta instrumental, tal não envolve sofrimento cruel nem prolongado.
4. A referida modalidade desportiva, já com longa tradição cultural em Portugal, disciplinada por uma federação com o estatuto de utilidade pública desportiva, é legalmente justificada ou não desnecessária no confronto com o Homem e o seu desenvolvimento equilibrado, pelo que não é proibida pelo artigo 1º, n.ºs 1 e 3, alínea e), da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, nem por qualquer outra disposição legal.


Decisão:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I

A Sociedade A intentou, no dia 16 de Abril de 1999, contra a B e o C de Vila Verde, acção declarativa e de condenação, com processo ordinário, pedindo a declaração da ilicitude da actividade dos réus de tiro aos pombos e a sua condenação a absterem-se de realizar identificado concurso de tiro aos pombos ou outro com a utilização de alvos vivos, nomeadamente pombos, e de matar, ferir ou deixar morrer, mormente à fome ou à sede os animais que se encontrem em seu poder, e a fixação de sanção pecuniária compulsória para a hipótese de não cumprirem a decisão que lhes seja desfavorável.Os réus apresentaram contestação, excepcionando a incompetência do tribunal em razão da matéria e afirmando a licitude da actividade de tiro ao voo, e o C de Vila Verde pediu, em reconvenção, a condenação da autora na indemnização no montante de 2 560 000$, e juros à taxa legal pelos prejuízos decorrentes de não ter podido realizar o torneio agendado para o dia 3 de Abril de 1999 em razão de providência cautelar conexa com a acção.Julgada, em recurso, improcedente a excepção da incompetência em razão da matéria do tribunal judicial, foi proferida sentença na fase da condensação do processo, no dia 29 de Agosto de 2003, que absolveu os réus quanto à acção e a autora quanto à reconvenção.Apelou a autora e a Relação, por acórdão proferido no dia 11 de Março de 2004, negou provimento ao recurso.
Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- a Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, derrogou parcialmente o despacho de 4 de Abril de 1994 no âmbito do tiro a alvos vivos;
- a regra é a do respeito pelo direito dos animais, conforme decorre das excepções relativas à tourada e a caça;
- são proibidas todas as violências injustificadas contra animais, ou seja, os actos consistentes em, sem necessidade, infligir-lhes a morte ou o sofrimento cruel e concursos, torneios, exibições ou provas similares que lhes provoquem dor ou sofrimento consideráveis;
- ao admitir-se que os animais podem servir como alvo, por isso trazer para o atirador um acréscimo de dificuldade e de divertimento pessoal, recusa-se-lhes qualquer espécie de protecção ou valor próprio;
- a prática de tiro aos pombos não tem subjacente qualquer tradição nem implica qualquer valor cultural, pelo que não há fundamento legal para fundamentar a excepção da sua permissão;
- a única utilidade real na morte dos animais é o gozo pessoal dos atiradores, e a proibição do tiro com alvos vivos está prevista no artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro;
- a substituição de animais vivos por alvos artificiais não deturpa o desporto nem lhe retira eficácia nem realização de objectivos;
- aceitar que a competição e a aferição da destreza e o acréscimo de gozo ou divertimento de alguns ou a tradição são suficientes para afastar a proibição da morte ou sofrimento de animais sem necessidade consagrada na Lei 92/95, de 12 de Setembro, é negar a sua existência;
- a atribuição da utilidade pública à recorrida B, em despacho omisso quanto ao tiro aos pombos, não afecta a referida proibição da lei;
- a interpretação da lei pelo acórdão recorrido no sentido da não proibição viola o texto e o seu espírito, pelo que deve ser revogado.
Responderam os recorridas, em síntese de conclusão:
- a protecção dos animais não está prevista na Constituição e o artigo 1º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, não contém enumeração taxativa das excepções a considerar; - nos termos dos artigos 202º, n.º 1, 205º, n.º 1 e 212º, n.º 3, do Código Civil, os animais são coisas móveis, sem direito à integridade pessoal ou física, pelo que podem ser apropriados;- a protecção dos animais não ocorre por via de lhes atribuir direitos, mas pelo dever das pessoas em relação a eles, e a atribuição àqueles do direito à vida e à integridade física só poderia operar por via de alteração da Constituição;
- no plano teleológico, a expressão necessidade constante da lei não pode ser interpretada no plano puramente económico, antes se impondo-se a ponderação de valores jurídicos tutelados, em termos de a protecção dos animais ceder a valores hierarquicamente superiores, sem recurso a analogia;
- a lei relativa à arte equestre, às touradas, à caça e à investigação científica não contém normas excepcionais insusceptíveis de aplicação analógica;
- existe total semelhança entre a actividade do tiro ao voo aos pombos e as largadas nos campos de treino de caça - artigos 2º, alínea l), da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, e 2º, alínea s), e 51º do Decreto-Lei n.º 227-B/2000, de 15 de Setembro;
- no tiro ao voo aos pombos a sua morte ocorre imediatamente ou muito rapidamente, sem sofrimento prolongado e cruel, e não morrem pelo meio indicado pelos recorrentes;
- o tiro aos pombos não é substituível pelo tiro aos pratos ou a hélices, existe há muito em Portugal, consta desde o século passado em programas de inúmeras festas populares de centenas de freguesias do País, é parte integrante do património cultural português;
- a defesa do património cultural português, prevista na Constituição, e das tradições justificam as excepções da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, pelo que importa operar a extensão analógica do conceito de necessidade;
- a vontade do legislador foi no sentido de manter a licitude da actividade de tiro aos pombos, tal como a pesca desportiva, apesar de nesta os peixes terem sofrimento cruel e prolongado.

II

É a seguinte a factualidade declarada provada nas instâncias:
1. A autora, Sociedade A, é uma associação zoófila, com estatutos aprovados pelo Alvará n.º 23/949, de 13 de Junho de 1949, cujos fins, entre outros, são os de impedir e reprimir tudo quanto represente crueldade contra os animais e assegurar o respeito pelos seus direitos.
2. A ré B foi declarada pessoa colectiva de utilidade pública por despacho do Primeiro Ministro de 15 de Junho de 1978, e foi-lhe concedido o estatuto de utilidade pública desportiva pelo despacho do Primeiro Ministro de 18 de Março de 1994.
3. A autora tem conhecimento de que as rés organizaram um concurso de tiro com chumbo, com utilização de pombos, e pretendem realizá-lo no dia 3 de Abril de 1999, nas instalações do segundo réu, prova integrada no calendário oficial de 1999 de tiro com alvos vivos.
4. A entidade responsável pela organização dessas provas é a primeira ré, nos termos do seu regulamento, e a realização em concreto da prova caberia ao segundo réu, e seria o contributo material, humano e financeiro do último que poria de pé o referido torneio, e seria da competência da primeira a coordenação, orientação e supervisão da dita prova.5. Uma das actividades dos réus é a prática de tiro com chumbo, com utilização de alvos vivos – pombos, aos quais são arrancadas penas da cauda antes de serem libertos, e, no âmbito dessas provas, são mortos.

III
A questão essencial decidenda é a de saber da legalidade ou ilegalidade em Portugal da modalidade de tiro aos pombos, isto é, com alvos vivos.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente e dos recorridos, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:- núcleo fáctico provado relevante para a decisão:
- núcleo normativo essencialmente aplicável no caso espécie;
- sentido literal das normas do artigo 1º, n.º 1, Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, no confronto com o caso espécie;
- abrange a proibição do n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, actividade desportiva de tiro ao voo de pombos?
- solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.
1.Comecemos por mencionar o núcleo fáctico relevante para a decisão do caso espécie.A B era, desde 15 de Abril de 1978, pessoa colectiva de utilidade pública, e é, desde 18 de Março de 1994, uma pessoa colectiva de utilidade pública desportiva. Uma das actividades dos réus é a prática de tiro com chumbo com utilização de alvos vivos – pombos, e organizaram, no âmbito do calendário oficial de 1999, um concurso de tiro com chumbo aos pombos e pretendiam realizar o torneio, nas instalações do segundo réu, no dia 3 de Abril de 1999.
A B é a responsável pela organização dessas provas, orientando-as e supervisionando-as nos termos do seu regulamento, e ao C de Vila Verde cabia, no caso, a sua realização por via de contributo humano, financeiro e material.
Antes de serem libertos para as provas de tiro ao voo são-lhes arrancadas penas da cauda e, no seu âmbito, são mortos.
Os factos em análise não revelam, por um lado, o processo de libertação dos pombos, nem o modo como se confrontam com os atiradores, nem o que acontece aos que não são atingidos, nem ao seu tempo de vida quando os tiros os não matam imediatamente.
Nem, por outro, revelam se os pombos abatidos são utilizados na alimentação humana ou se o não são por serem mortos sem condições de salubridade.Em razão da notoriedade geral, pela constatação das pessoas em várias zonas do nosso País, deve também considerar-se assente que a actividade desportiva de tiro aos pombos em Portugal é antiga de mais de um século e meio (artigo 514º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

2.Seleccionemos agora o núcleo normativo essencialmente aplicável no caso espécie.A propósito das tarefas fundamentais do Estado, resulta da Constituição da República Portuguesa que entre elas se contam a protecção e valorização do património cultural do povo português e a defesa da natureza e do ambiente (artigo 9º, proémio, e alínea e), primeira parte).
A Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto, que regia sobre o exercício da caça aquando da publicação da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, estabelecia, além do mais que aqui não releva, por um lado, no n.º 1 do seu artigo 30º, que as associações e os clubes de caçadores e de cunicultores podiam ser autorizados a instalar e manter campos de treino destinados à prática, durante todo o ano, de actividades de carácter venatório, nomeadamente a de exercício de tiro e de treino de cães de caça nos termos em que viesse a ser regulamentado.
E, por outro, estabelecia no n.º 2 daquele artigo que nos campos de treino de caça somente eram autorizadas as largadas e o abate de espécies cinegéticas criadas em cativeiro.O Decreto-Lei n.º 311/87, de 10 de Agosto, primeiro diploma que regulamentou a Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto, estabeleceu, por um lado, ser permitida a caça em cativeiro, designadamente para utilização em campos de treino de caça, mediante autorização da Direcção-Geral das Florestas, ouvida a Direcção-Geral da Pecuária sobre os aspectos sanitários (artigo 79º, n.ºs 1 e 2).
E, por outro, que a Direcção-Geral das Florestas podia constituir ou autorizar a instalação de campos de treino de caça destinados à prática de actividades de carácter venatório, durante todo o ano, nomeadamente o exercício de tiro com arma de fogo, arco ou besta, cetraria e treino de cães de caça, em termos a regulamentar por portaria do Ministro da Agricultura, Pescas e Alimentação (artigo 80º).
Por seu turno, a Portaria n.º 816-B/87, de 30 de Setembro, estabelecia ser autorizável pela Direcção-Geral das Florestas às associações, sociedades ou clubes de caçadores e de canicultores legalmente existentes, a requerimento deles, a instalação de campos de caça destinados à prática de actividades de carácter venatório, nomeadamente o exercício de tiro com armas de fogo durante todo o ano e em todos os dias da semana (artigos 1º e 2º, n.º 1).
O mesmo regime de criação de caça e aves de presa em cativeiro foi mantido pelo novo regulamento da mencionada lei, o Decreto-Lei n.º 274-A/88, de 3 de Agosto, que substituiu o Decreto-Lei n.º 311/87, de 10 de Agosto, salvo o acrescentamento da finalidade de realização de corridas de lebres).
O referido regulamento foi, entretanto, substituído pelo Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, que manteve essencialmente o regime anterior relativo aos campos de treino de caça (artigos 87º e 88º).
No regulamento da lei da caça que se seguiu ao Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, ou seja, no Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto, continuou a constar o mesmo regime concernente à criação de caça em cativeiro e aos campos de treino de caça (artigos 87º e 88º).
E a Lei n.º 179/99, de 21 de Setembro, que estabelece as actuais bases de gestão sustentada dos recursos cinegéticos, substitutiva da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto, manteve a vigência dos diplomas que a regulamentaram, incluindo o preceito que admite a reprodução, criação e detenção de espécies cinegéticas em cativeiro para utilização, além do mais, em campos de treino de caça, definidos como áreas destinadas à prática, durante todo o ano, de actividades de carácter venatório, nomeadamente o exercício de tiro e de treino de cães de caça e as provas de Santo Huberto quanto a essas espécies (artigos 2º, alínea l) e 27º, n.º 1).
As bases do sistema desportivo constam da Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro. Por via dela, as federações desportivas, sendo embora entidades de direito privado, podiam assumir, por via da atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva, na sua área específica, poderes de regulamentação, de disciplina e outros de natureza pública (artigo 22º, n.º 1).
A referida lei foi regulamentada por via do Decreto-Lei n.º 144/93, de 26 de Abril, que contém o regime jurídico das federações desportivas.
Decorre deste último diploma, por um lado, que o estatuto de utilidade pública desportiva atribui a uma federação desportiva, em exclusivo, a competência para o exercício, dentro do respectivo âmbito, de poderes de natureza pública, bem como a titularidade de direitos especialmente previstos na lei (artigo 7º).
E, por outro, terem natureza pública os poderes das federações exercidos no âmbito da regulamentação e disciplina das competições desportivas, quer sejam conferidos pela lei para a realização obrigatória de finalidades compreendidas nas atribuições do Estado e envolvam, perante terceiros, prerrogativas de autoridade, quer se traduzam na prestação de apoios ou serviços legalmente determinados (artigo 8º, n.º 1).
Na sequência dos mencionados diplomas e, naturalmente, dos estatutos da B, foi a esta atribuída pelo Governo o estatuto de utilidade pública desportiva (Diário da República, II Série, n.º 78, de 4 de Abril de 1994).
Pouco mais de um ano depois, foi publicada a Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, proibindo o uso da violência injustificada sobre os animais, disciplinando o comércio e os espectáculos com recurso a eles e estabelecendo normas reguladoras da sua reprodução, identificação, transporte e eliminação pelas câmaras municipais e sobre a legitimidade das associações zoófilas para agir em juízo em sua defesa. Estabelece o seu artigo 1º, n.º 1, daquela Lei o seguinte: "São proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal".
Expressa, por seu turno, o seu n.º 3, proémio, alínea e): "São também proibidos os actos consistentes em utilizar animais para fins didácticos, de treino, filmagens, exibições, publicidade ou actividades semelhantes, na medida em que daí resultem para eles dor ou sofrimento consideráveis, salvo experiência científica de comprovada necessidade".Na determinação do sentido prevalente das referidas normas partir-se-á da sua letra e confrontar-se-á o que dela pareça resultar com a sua história, inserção sistemática e escopo finalístico, tendo presente que se deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9º do Código Civil).
Nessa tarefa interpretativa importa atentar em que o facto de a lei proibir, em regra, a morte desnecessária dos animais não significa que eles sejam titulares de direitos subjectivos à vida e à integridade física, certo que, segundo a nossa ordem jurídica, trata-se de coisas móveis (artigos 202º, n.º 1, 205º, n.º 1 e 212º, n.º 3, do Código Civil).
Trata-se, com efeito, são coisas móveis, outrora designadas por coisas semoventes, apropriáveis, pelo que, pelo menos na ordem jurídica portuguesa, não faz qualquer sentido a afirmação no sentido de que a morte de pombos por via de tiro ao voo ofende o seu direito à vida ou à integridade física.
Na realidade, aquilo que se vem afirmando sobre a designação de direitos dos animais são, afinal, os deveres que as pessoas tem para com eles, além do mais porque se trata de seres que com elas partilham a natureza e sem os quais a consecução dos seus fins não seria viável.
As normas jurídicas tendentes à protecção dos animais ou, noutra perspectiva, atinentes à defesa da comunidade de pessoas face ao desconforto de terem de percepcionar a desumanidade de algumas, visam essencialmente fins sociais, sendo que as vantagens que delas resultam para eles são mero reflexo dessa normatividade de fim social.
É nesse sentido que devem ser entendidos os textos internacionais sobre a protecção dos animais quando se referem ao seu direito à vida, à integridade física, à liberdade e ao respeito (Declaração Universal dos Direitos do Animal, Unesco).

3.Atentemos agora, confrontando-o com o caso espécie, no sentido das normas do artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, que resulta da sua letra.
A previsão desta parte do artigo reporta-se a violências injustificadas contra animais por via de dois conceitos indeterminados, e a sua estatuição é a da respectiva proibição. A referida previsão normativa relativa a violências injustificadas é de algum modo densificada por via dos conceitos morte, sofrimento cruel e prolongado, graves lesões e desnecessidade.Vê-se, pois, que também a mencionada densificação do conceito violências injustificadas ocorre por via de conceitos indeterminados, como é o caso dos que envolvem as expressões sem necessidade, sofrimento cruel e prolongado e de graves lesões. A violência injustificada no contexto da lei é o desnecessário acto de força ou de brutalidade contra os animais.
O conceito normativo de necessidade revela-se essencial na determinação âmbito de aplicação do preceito em análise, pelo que importa determinar-lhe o sentido, naturalmente por via do seu preenchimento de tipo valorativo, no confronto com o caso espécie.O conceito de necessidade é polissémico, porque é susceptível de significar, além do mais, indispensabilidade, justificabilidade, utilidade, e estado de privação, envolvendo as primeiras significações um sentido essencialmente jurídico e a última um sentido económico. Tendo em conta os termos da lei e a realidade das coisas animais, o conceito jurídico sem necessidade aponta no sentido de significar, no confronto com o Homem e o seu desenvolvimento integral, sem justificação razoável ou sem utilidade.
A morte dos animais traduz-se na eliminação da sua estrutura vital, enquanto a sua lesão grave se consubstancia no resultado de uma acção ou omissão, ou seja, no ferimento, golpe profundo ou extenso ou dor intensa.
O sofrimento cruel e prolongado dos animais é, por seu turno, a sua dor física assaz intensa e por tempo considerável face ao circunstancialismo envolvente.Aproximando os referidos conceitos normativos dos factos provados, não se vislumbra que no âmbito da actividade desportiva em causa os pombos sejam afectados de sofrimento cruel e prolongado.
Com efeito, a circunstância de antes da libertação dos pombos lhe serem arrancadas algumas penas da cauda, ao que parece com vista a imprimir-lhes a irregularidade do voo, não pode ser considerada nem lesão nem geradora de sofrimento cruel. Acresce que o necessário enquadramento dos factos disponíveis na previsão e na estatuição legal cinge-se à morte dos pombos por via dos tiros dos concorrentes envolvidos na indicada prova desportiva em e ao sofrimento que isso necessariamente lhes provoca.
4.Tendo presente o caso espécie, confrontemos agora o sentido literal das normas do artigo 1º, n.º 1, Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, com o que resulta dos pertinentes elementos extraliterais de interpretação.
Na história da lei, relativamente aos seus trabalhos preparatórios, assume particular relevância o projecto de lei n.º 107/VI, da autoria do deputado António Maria Pereira, que inseria na alínea j) do n.º 1 do artigo 3º a expressão de que eram também proibidos os actos consistentes em organizar provas de tiro a animais vivos (Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 33, de 6 de Abril de 1995, pág. 462).
O referido projecto foi substituído pelo Projecto n.º 530/VI, cuja alínea j) do n.º 1 do artigo 3º ainda expressava serem também proibidos actos consistentes em organizar provas de tiro a animais vivos.
No debate parlamentar da lei na generalidade, o deputado António Maria Pereira afirmou que no artigo 1º se enumeravam os princípios gerais, nos quais se proibia, em termos genéricos, a crueldade para com os animais, incluindo o seu abandono e se concretizavam depois algumas actuações particularmente cruéis.
E no que concerne à justificação do texto da alínea j) do n.º 1 do artigo 3º, afirmou proibir-se o tiro aos pombos, modalidade também proibida em numerosos países da União Europeia, designadamente na Inglaterra, França e no Grão-Ducado do Luxemburgo, nos quais o pombo vivo era substituído por um alvo lançado de um aparelho, solução com que se obtinha o mesmo resultado de pôr à prova a perícia dos atiradores sem o aspecto cruel que reveste o pombo acabado de ser liberto (Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 88, de 17 de Junho de 1995, pág. 2955).
Todavia, a referida proibição não passou para a Lei em análise, e não resulta da discussão parlamentar a motivação dessa supressão.
Perante esse circunstancialismo, é razoável que o intérprete conclua no sentido de que o legislador pretendeu manter a licitude da prática desportiva de tiro ao voo de pombos.Mas também não é absolutamente descabido o entendimento da recorrente no sentido de que tal supressão foi pensada em razão da consideração da sua desnecessidade por virtude de a proibição já constar do proémio e do n.º 1 do artigo 1º da referida Lei.Daí que o elemento histórico da Lei em causa não seja decisivo para a determinação sobre se o seu artigo 1º, n.º 1 inclui ou não a proibição da prática desportiva de tiro ao voo de pombos.
Dir-se-á também, por antecipação, não assumir qualquer relevo, neste ponto, o facto de oito deputados, cerca de quatro anos depois da publicação desta Lei, haverem apresentado um projecto de lei sobre a protecção dos animais com vista a tornarlícita a prática de tiro com alvos vivos desde que sob a égide de uma federação desportiva, tal como não releva a circunstância de os deputados de um dos grupos parlamentares haverem apresentado, cerca de dois anos depois da publicação da Lei, um projecto para a sua alteração no sentido da proibição de forma expressa das provas de tiro com animais vivos.
No que concerne ao elemento sistemático de interpretação da lei, ou seja, no quadro da unidade do sistema jurídico envolvente, importa ter em conta o contexto normativo concernente, os respectivos lugares paralelos e a envolvência sistemática.
No que concerne ao contexto do próprio normativo em apreciação, em sede de elenco complementar de proibições de violência contra os animais, logo se ressalva a violência na arte equestre e nas touradas autorizadas por lei, em casos de experiência científica de comprovada necessidade e na prática da caça (artigo 1º, n.º 3 alíneas b), e) e f), desta Lei).
Quanto ao paralelismo normativo, tendo em conta prática desportiva de tiro ao voo de pombos, a anterior lei da caça e respectivos regulamentos, que vigoravam aquando da publicação da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, permitiam a existência de campos de treino da prática de actividades de carácter venatório com largadas e abate de espécies cinegéticas criadas em cativeiro, incluindo aves de presa em que se incluem, como é natural, os pombos bravos.
Assim, estamos perante normas que se reportam a uma prática de tiro a alvos vivos, que não diverge na sua estrutura essencial da que ocorre no caso espécie, e que a lei admite.Face aos ao artigo 2º, alínea a), dos Estatutos da recorrida B, datados de 29 de Outubro de 1984, o seu objecto envolve a competência para orientar e dirigir superiormente o tiro ao voo e aos pratos (Diário da República, III Série, de 9 de Janeiro de 1985).
Foi-lhe inicialmente atribuída pelo Governo a posição jurídica de pessoa colectiva de utilidade pública e, posteriormente, a posição jurídica de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva (Diário da República, II Série, de 20 de Junho de 1978, e de 4 de Abril de 1994).
Por virtude de lhe ter sido atribuído o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva, passou a exercer poderes regulamentares e disciplinares e outros de natureza pública no âmbito, além do mais, do tiro ao voo e aos pratos (artigos 22º, n.º 1, da Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro, e 7º do Decreto-Lei n.º 144/93, de 26 de Abril).
O referido circunstancialismo não releva essencialmente, como é natural, para a interpretação do proémio e do n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, no sentido de a respectiva proibição não abranger a prática desportiva de tiro ao voo com pombos, mas não pode deixar de ser considerado no quadro dessa interpretação, porque se não compreenderia que o Governo mantivesse à recorrida Federação de Tiro Com Armas de Caça o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva, exercendo por via dele, no âmbito da organização e disciplina da actividade desportiva de tiro ao voo de pombos, além do mais, poderes de ordem administrativa, não obstante a lei proibir essa prática.
A propósito do fim da lei em análise, resulta da respectiva discussão parlamentar a ideia de os homens, que não podem prescindir da existência dos animais, os não devem torturar gratuitamente e devem reduzir, até onde for possível, o seu sofrimento, mas tendo em atenção a realidade cultural portuguesa (Deputados António Maria Pereira e João Amaral, no debate parlamentar relativo à Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 88, 1995, págs. 2957 e 2959).
Na realidade, o escopo finalístico desta Lei foi o de proporcionar o chamado bem estar dos animais, prevenindo que lhe sejam infligidos maus tratos por acção ou omissão das pessoas, e proibindo as suas práticas de crueldade e violência física e ou psicológica.
Tendo em linha de conta o pressuposto da proibição constante do proémio e do n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, consubstanciado no conceito sem necessidade, a lei equaciona a proibição com outros interesses considerados relevantes no nosso ordenamento jurídico.
Dir-se-á, assim, numa breve síntese, que o fim da lei é proteger os animais de violências cruéis ou desumanas e gratuitas, para as quais não exista justificação ou tradição cultural bastante, isto é, no confronto de meios e de fins envolvidos em função do Homem.
5.Atentemos agora, finalmente, na questão fulcral de saber se a proibição do n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, abrange ou não a actividade desportiva de tiro ao voo de pombos.
Não releva nesta matéria, ao invés do que do alegado pela recorrente, o facto por ela invocado de a prática da modalidade desportiva em causa visar o treino da precisão do tiro e de os pombos poderem substituídos, sem perda da eficácia respectiva, por pratos ou hélices.
Mas, tal como ela refere, não pode haver tradição, por mais antiga que seja, que justifique a infracção da lei que proíba a prática de actividade de violência contra os animais, mas não é isso que está em causa no recurso, certo que se pretende saber se ocorre ou não essa proibição.
Também não relevam para o mesmo efeito as concepções e a sensibilidade de cada um acerca da natureza como suporte da vida e da própria vida humana e dos outros animais, pois o que importa é a determinação do sentido e alcance das normas interpretandas.
Os factos não revelam, como já se referiu, que aos pombos, na sua sujeição de alvos de tiro em voo no âmbito da prática desportiva em análise, seja infligido sofrimento cruel e prolongado ou lesões graves diversas daquelas que lhe provocam a morte.A solução do caso espécie depende, por isso, essencialmente, conforme já se referiu, da ponderação de valores sociais envolvidos no conceito indeterminado de necessidade inserido na referida previsão legal proibitiva do n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro.
Ao invés do que a recorrente alegou, o único critério de determinação da necessidade da morte dos pombos não pode ser apenas o que resulta do confronto valorativo entre o acréscimo da perícia dos atiradores e o gozo destes e a morte e o sofrimento dos pombos.Nem há fundamento legal para considerar a exclusiva conexão desse conceito com razões de alimentação, de saúde pública, de investigação científica, porque, conforme resulta do ordenamento jurídico globalmente considerado, há outros valores a considerar nesta sede.
Conforme resulta da experiência comum, os pombos reproduzem-se facilmente, não há risco da sua extinção, e a própria prática desportiva em causa constitui um facto de promoção do crescimento da espécie.
Como resulta da própria natureza das coisas, no âmbito das competições desportivas de tiro ao voo de pombos desenvolve-se actividade económica no quadro dos bens e dos serviços, com a consequente produção de riqueza individual e colectiva.Tal como acima se referiu, o conceito de necessidade em análise significa o resultado de uma valoração de confronto entre a preservação dos animais na sua vida e integridade física e o seu sacrifício socialmente útil e justificado ou útil em função do interesse das pessoas ou da comunidade.
A referida justificação não é excluída em absoluto em situações em que está em causa uma prática desportiva de longa tradição integrante da cultura de uma comunidade humana.
Ora, o tiro ao voo de pombos, em paralelo com a arte equestre e as touradas, traduz-se numa modalidade desportiva com tradição e relevância em Portugal, conforme resulta, além do mais, designadamente do número de clubes de tiro existentes em Portugal e, de algum modo, de o Governo ter confiado a uma federação desportiva o seu fomento, regulação e disciplina.
Por isso, no caso espécie, a morte infligida aos pombos não é meramente gratuita ou improvisada, porque se inscreve numa prática desportiva já antiga, integrada na tradição, como processo de ligação do passado ao presente, e, consequentemente faz parte do nosso património cultural, a exemplo do que ocorre com as touradas e a arte equestre.
Decorrentemente, tendo em conta o que se prescreve no artigo 1º, n.º 1, da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, há no caso espécie justificação e utilidade para a e na morte dos pombos no âmbito das provas de tiro ao voo e para o sofrimento que isso lhes implica, que se não revela cruel.Por conseguinte, a prática desportiva de tiro ao voo de pombos não se enquadra na proibição a que se reporta o proémio e o n.º 1 do artigo 1º nem no seu n.º 3, alínea e), da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, pelo que não é proibida no nosso ordenamento jurídico.
Improcede, por isso, o recurso, com a consequência de dever manter-se o conteúdo do acórdão recorrido.
Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Todavia, está dispensada de pagamento de custas neste processo, ou seja, goza de isenção objectiva do seu pagamento (artigo 10º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro).
IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 19 de Outubro de 2004.
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís

9 comentários:

  1. Anónimo disse...

    O Acórdão em apreço trata sobre um dos problemas mais actuais em matéria de ambiente que é a protecção dos animais; o Supremo Tribunal de Justiça debruçou-se sobre a problemática da licitude ou ilicitude da actividade de tiros aos pombos enquanto alvos vivos. O STJ considerou a prática lícita à luz do nosso Ordenamento Jurídico, concluindo que não há nenhum preceito, constitucional ou legal, que a proibisse. O Acórdão é formulado com base no seguinte pressuposto: os animais são coisas, destituídos de personalidade jurídica, e não podem, de facto, ser titulares de direitos fundamentais que possam ser invocáveis contra o homem (como o direito à vida ou à integridade física). Neste sentido, a Lei 92/95, de 12/9, tem como intuito fins sociais e incute no homem o dever de proteger os animais contra agressões gratuitas, cruéis ou desumanas, entendendo que o conjunto de conceitos indeterminados a que se reporta o artigo 1º, nº1 (‘violência injustificada’, ‘morte’, ‘lesão grave’, ‘sofrimento cruel e prolongado’) significa acto gratuito de força ou brutalidade causando dor física intensa ou eliminação vital dos animais, sem qualquer justificação e utilidade para o homem. Neste caso, sendo uma modalidade desportiva com tradição e relevância em Portugal, a actividade não era meramente gratuita e os pombos teriam uma morte rápida, sem sofrimento cruel e prolongado. Então, através da ponderação dos valores imanentes à actividade em causa e dos valores ambientais inerentes à qualidade de ser animal, entendeu que estes deviam ceder, porque funcionavam no interesse do Homem, de acordo com uma base utilitarista. Neste ponto pode-se dizer que o STJ assume uma visão antropocentrista sobre a protecção dos animais (aliás recorrente no STJ em decisões similares).
    O sentido axiológico-normativo da Lei 92/95 é o dever de respeitar os animais, atento ao quadro de valores vigentes na sociedade, pretende que todas as práticas arbitrárias e desnecessárias sejam proibidas porque provocam um sofrimento inútil ao animal, enquanto ser vivo dotado de sensibilidades, que merece reprovação. Desta forma, o sentido interpretativo do artigo 1º, nº1 tem que passar pela concretização do conceito ‘necessidade’ através da ponderação de valores em causa. O STJ entendeu a prática de tiros aos pombos fazia parte da tradição cultural e por isso ‘é legalmente justificada ou não desnecessária no confronto com o homem e o seu desenvolvimento equilibrado’. Contudo, justificar esta pratica invocando o ‘património cultural do povo português’, de acordo com o artigo 9º, alínea d) da CRP, é interpretar de forma muito ampla o conceito, e esquecer, por outro lado, a protecção ambiental contra práticas agressivas e arbitrárias. Assim, sob o ponto de vista do equilíbrio ambiental esta não é necessária pelos fins que visam atingir: que é a diversão e divertimento entre os seus praticantes, não sendo o recurso aos pombos enquanto alvos vivos inevitável para o prosseguimento da actividade (podendo sempre recorrer a pratos e tiro as hélices). Alias, se o legislador quisesse salvaguardar tal prática a teria colocado a par do regime excepcional das touradas, arte equestre, caça e actividade científica que embora causem morte, sofrimento cruel e lesões graves aos animais são lícitas.
    Desta forma, a Lei 92/95 cria medidas de protecção para os animais, tendo como objectivo salvaguardar a vida e a integridade física dos animais contra violências injustificadas e desnecessárias que lhes provoquem a morte, sofrimento ou graves lesões. É produto da concretização de valores dominantes na comunidade internacional e nacional, no que respeita à protecção da vida e da integridade física dos animais; é fruto da consciencialização que os animais merecem respeito pelo homem, fazem parte da natureza e devem ser protegidos, sendo essa a intenção, por exemplo, da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, que apesar de não possuir força jurídica vinculativa, demonstra a necessidade de uma efectiva tutela dos animais. Com isto não se pense que há qualquer intenção de atribuir personalidade jurídica aos animais, há simplesmente um propósito de conferir uma protecção adequada e proporcional aos animais face a vivencia relacional, destes com o homem. Apesar de haver uma evolução no sentido de não considerar os animais como coisas móveis, mas antes como uma categoria especial de coisas (‘coisas sui generis’), a par de outros países (como Áustria e Alemanha), atribuir direitos subjectivos aos animais seria uma tarefa árdua e impossível na prática, para além de tecnicamente impossível, pelo simples facto de não serem sujeitos de direito (ao contrário dos defensores do ecocentrismo puro que pretendem atribuir personalidade jurídica aos animais e, consequentemente direitos subjectivos). Por outro lado, a CRP contém uma orientação de protecção da natureza, de carácter objectivo (o Estado como protector do ambiente), enquanto incumbência do Estado, nos termos do artigo 9º CRP, alíneas d) e e) (que, enquanto norma programática, tem concretização em matéria de direitos dos animais na Lei 92/95). Também há o dever fundamental de respeitar o ambiente, nos termos do 66º, nº1 CRP (associado ao direito fundamental do ambiente, que embora com conteúdos distintos permitem atingir o fim ultimo que é a salvaguarda do ambiente). Desta forma, entendendo o direito fundamental ao ambiente também enquanto dever, a Lei 92/95 não é mais do que uma lei reguladora ou concretizadora dos termos e do quantum do dever fundamental de respeitar o ambiente. Assim sendo, e representando a Lei 92/95 uma densificação do dever constitucional de respeitar o ambiente, todas as práticas que ofendem o seu escopo legal são proibidas: ‘todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal’. E o conceito indeterminado ‘necessidade’ tem de ser interpretado em conformidade com os valores que se visam defender. Assim, neste caso, o que está em causa é, por um lado, a vida e a integridade física do animal e, por outro lado, uma actividade desportiva que tem como fim último a confraternização lúdica entre os seus participantes, não se considerando inevitável o recurso aos pombos como alvos vivos, uma vez que o recurso a outros artefactos promove o mesmo resultado.
    Assim numa interpretação conforme à CRP a lesão de bens ambientais é inevitavelmente excepcional e só quando absolutamente justificada é que é permitida, sendo esse o sentido do artigo 1º, nº 1 da Lei 92/95; então a pratica de tiro aos pombos enquadra-se no conjunto de valores que o legislador quis salvaguardar, que neste caso é protecção dos animais (e do ambiente), beneficiar a natureza e de a defender contra a actividade agressiva do Homem não justificada.

    Ana Margarida Araujo, subturma 11  

  2. Anónimo disse...

    Este acórdão do STJ, relativo ao “Tiro aos Pombos” (e que vem no seguimento do Acórdão da Relação de Guimarães de 29.10.2003, Processo 223/03) tem o seguinte enquadramento/evolução:

    - A Associação “Animal” (Associação Nortenha de Intervenção no Mundo Animal) intentou contra o Clube Industrial de Pevidém uma providência cautelar para evitar a realização de um concurso de tiro aos pombos (na data marcada ou em posterior), bem como para não matar qualquer pombo que detenha (e para proceder à entrega dos mesmos à Associação protectora, na qualidade de fiel depositária). O Tribunal de Guimarães decide a favor da Requerente em todos os pedidos e fixa, em caso de incumprimento, o pagamento de uma sanção pecuniária compulsória à Requerente e ao Estado. O Requerido interpõe, então, competente recurso.

    São exploradas fundamentações a favor e contra a utilização de pombos como alvos vivos num concurso de tiro. É também feita uma anotação sobre estes dois acórdãos. Analisemos:

    - No primeiro acórdão, que decide “a favor dos pombos”, a questão é resolvida pela impossibilidade (para o Relator) de se poder fazer analogia com as excepções constantes na Lei 92/95, de 12 de Setembro. O legislador, ao excepcionar aí a tourada e caça, terá consagrado situações que, apesar de serem descritivamente semelhantes, são normativamente distintas. A tourada por ser um acontecimento cultural com centenas de anos (não sendo gratuito o sofrimento infligido ao touro, nem resultando na sua morte… ao invés do tiro aos pombos, que termina quase sempre na morte cruel dos animais e também não teria assim tanta tradição em Portugal) e a caça, por estar em causa o acto venatório e não o simples divertimento do atirador. Logo, o tiro aos pombos seria ilícito.

    - No segundo acórdão, que decide “a favor dos atiradores”, chama-se a atenção para o facto de a protecção do património cultural estar efectivamente consagrada na CRP (artigo 9º, alínea e) em conjugação com o artigo 78º) e isto seria claramente o caso, uma vez que a tradição já se praticaria no último século e meio. Além disso, não só as excepções positivadas não seriam taxativas, como não teriam carácter excepcional (não se vendo como impedir a analogia em situações tão semelhantes como a caça e o tiro aos pombos). Acrescentava ainda que o sofrimento não era assim tanto, uma vez que os animais morriam depressa e que, se fosse proibido o tiro aos pombos, não se via como conseguia subsistir a pesca desportiva. Logo, seguindo a sua jurisprudência anterior, e por não se enquadrar na proibição do diploma legal, o STJ considerou que o tiro aos pombos seria lícito.

    Quanto a nós, e após devida análise da anotação do Dr. André Dias Pereira, importa tirar as seguintes conclusões:

    - Nem o Tribunal da Relação de Guimarães, nem o Supremo Tribunal de Justiça estão isolados nas suas posições. De facto, o STJ seguiu, coerentemente, as posições de anteriores arestos sobre o mesmo tema e o Tribunal de Guimarães decidiu da mesma maneira que têm decidido muitos tribunais de primeira instancia até ao presente;

    - Em Portugal, o que rege a matéria de protecção dos animais (neste âmbito) parece ser apenas esta Lei 92/95, de 12 de Setembro. Existem outros diplomas, que regulam aspectos específicos, mas nenhuma “Lei Geral de Protecção dos Animais”… o mais próximo disso ainda será o diploma em apreço;

    - No plano internacional existem inúmeros documentos no sentido da tutela dos animais, entre os quais o Anotador destaca a Declaração Universal dos Direitos dos Animais (UNESCO – 1978) e o Protocolo Anexo ao Tratado de Amesterdão Relativo ao Bem-Estar Animal. Estes documentos (a par de muitos outros, entre os quais os próprios Tratados Constitutivos) fundam o argumento do Anotador de que, de acordo com o conceito de interpretação conforme, não se pode desproteger os animais enquanto elemento da biodiversidade (fala até em biocídio, nalguns casos);

    - Em vários países europeus esta prática é expressamente proibida. Por opção ou por esquecimento, esse não é o caso de Portugal;

    - Vários países europeus (como a Suiça e Alemanha) e não só (o Brasil, por exemplo) consagram regimes específicos que permitem considerar os animais coisas com um regime especial (lembra-se a discussão sobre o cadáver e o seu regime jurídico enquanto “coisa especial”). Ora, o que é facto é que não só é inegável que, para efeitos de categorização, os pombos sejam coisas móveis, susceptíveis de apropriação, como o seu problema não tem qualquer semelhança com a questão que se levanta a propósito do cadáver enquanto coisa (e que, para não haver dúvidas, se apoiava largamente na construção do artigo 71º do Código Civil). Se o legislador queria categorizar os animais como coisas sui generis, deveria ter sido mais explícito no lugar competente;

    - Diz-se que os animais não são nunca sujeitos de direitos mas que as normas que os protegem visam tutelar “a comunidade de pessoas que encaram desconfortavelmente a desumanidade de terceiros contra animais”. Então, se o panorama é esse, não se estará a alargar demasiado o número de situações que carecem de tutela? Não será igualmente desconfortável assistir a uma caçada?

    - São dados como exemplos quase paralelos, as situações de touradas, caças ou pesca desportiva, alegando que, ou os valores em causa são diferentes (de cariz tradicionalmente cultural, por exemplo) ou é insubstituível o papel desempenhado pelos animais (como se afirma no caso da pesca desportiva). O que não deixa de ser perplexo, uma vez que, se não for necessário arranjar uma alternativa para a substituição do papel do peixe, enquanto alvo vivo na pesca desportiva, nunca ninguém apostará na invenção de um alvo não vivo apto para o substituir. Afinal, foi assim que surgiram os sistemas de hélices e de pratos, no caso da prática de tiro;

    - Não deixa de ser igualmente curioso que o Anotador (bem como o STJ) tente “pesar” tradições, sendo que a pesca desportiva nunca foi uma tradição em Portugal e é, na mesma, admitida (ainda que assumindo a dificuldade de substituir os “alvos” não deixa de se influenciar um sofrimento cruel e desnecessário aos animais);

    - O Anotador aceita a analogia nas “largadas” nos campos de treino de caça (somente para treino), por ser normativa e descritivamente semelhante à excepção da caça em si. Ora, se considerarmos que a largada (por muito que teste a perícia do atirador em acertar um alvo que seria eficaz e facilmente substituído por um alvo não vivo) é um mero treino e que esse treino é feito sobre animais (que não servirão para fins médicos, alimentares ou sequer para o fim lúdico último… afinal é um treino!) não será uma situação muito semelhante à do tiro aos pombos? Não há aqui clara identificação normativa de situações? Não seria (até com os meus fundamentos) aqui a analogia aconselhável?

    - Ao argumento do peso da tradição do tiro aos pombos, o Anotador responde com a necessidade de remissão legal para atendermos aos usos com fonte legal. Ora, mesmo que estivéssemos perante um mero uso, a discussão devia antes ser situada no campo do património cultural constitucionalmente tutelado. E nada nos artigos 9º e 78º da CRP distingue uma tradição de “segunda” ou de “primeira”. Isto é, se apenas pudermos apelidar de tradição os usos para os quais a lei remeta, deixaremos de fora todos os usos omissos e costumes tradicionais portugueses, por falta de remissão legal (no quadro do artigo 3º do CC). Também não parece proceder a interpretação do que é uma tradição “digna” de ser protegida. É que, se “uma Constituição progressista e aberta como a nossa não pode servir de cobertura para práticas degradantes da condição dos animais e da natureza e dos próprios cidadãos, que as praticam” então também não se poderá permitir (e entender), por maioria de razão, a caça ou a pesca desportiva que, por muito justificadas e excepcionadas que estejam, não deixam de infligir o mesmo tipo de sofrimento aos animais…; e

    - Para terminar, a nossa grande dúvida prende-se com o facto de (apesar de isto não estar directamente referido em nenhum dos Acórdãos ou sequer na Anotação) estarem em confronto dois valores constitucionais e duas tarefas do Estado, como podemos ver confrontando o artigo 9º, o artigo 66º e o artigo 78º (em especial estes dois últimos).

    Assim, teríamos de nos pronunciar sobre a licitude da prática de tiro aos pombos, por todos os motivos supra expressos mas, sobretudo porque, apesar de haver uma proibição geral no diploma, esta modalidade é em tudo idêntica à caça e, como tal, comporta analogia. Seja por má técnica legislativa ou por esquecimento do legislador, o diploma deveria conter uma lista de proibições e não uma cláusula geral que comportasse excepções: só assim se poderia limitar uma liberdade privada que, acresce, é um direito cultural constitucionalmente protegido e consubstancia uma tarefa fundamental do Estado.
    Na verdade, se quiséssemos ser verdadeiramente rigorosos teríamos de considerar igualmente ilícita a caça e, quiçá, a pesca desportiva. Não só pela mesma identidade de situações mas também porque, se quiséssemos recorrer (como somos aliás obrigados a fazer) à interpretação conforme ao Direito Comunitário, então veríamos que o Protocolo de Amesterdão também impede a caça e a pesca desportiva. Até porque o Anotador dá o exemplo de uma modalidade (tiro às perdizes) que considera ilícita… de facto, esta deixa de o ser se estivermos a caçar. Ora, o que está em causa não seria nunca o sofrimento do animal, ou caçar perdizes nunca seria lícito.
    Não queremos com isto considerar o direito fundamental à protecção do património cultural sobre o direito fundamental do ambiente, mas somente reconhecer que, pela natureza da actividade, nem o sofrimento é desproporcional face à tradição preservada, nem os pombos correm o risco de desaparecer.

    [Maria Inês P. Ramalho, subt. 4]  

  3. Subturma 2 disse...

    No acórdão em questão discute-se a licitude do tiro ao pombo em voo, e consequentemente se essa prática está ou não inserida nas proibições do artigo 1º nº1 da Lei nº 92/95, de 12 de Setembro.
    O STJ, recorreu aos trabalhos preparatórios, ao elemento histórico e ao elemento sistemático, para determinar se o tiro ao pombo está ou não previsto no artigo 1º nº1 da referida lei.
    Quanto aos trabalhos preparatórios, inicialmente previu-se a proibição de tiro a animais vivos, mas a mesma acabou por não ficar na versão final da lei. Assim este parece ser um indício forte de que o legislador não pretendia a ilicitude da prática de tiro ao pombo. Mas, a verdade é que pode concluir-se que essa proibição não consta da lei por já estar contida no artigo 1º nº1. Relativamente ao elemento histórico, também ele não é decisivo, pois apenas há que referir que existiram dois grupos de deputados que pretenderam alterar a lei, após a sua publicação. E enquanto uns defendiam a licitude do tiro ao pombo, outros defendiam a sua proibição. Por fim, quanto ao elemento sistemático, há que considerar o contexto normativo, os respectivos lugares paralelos e a envolvência sistemática. Quanto ao contexto normativo da lei em causa destaca-se a violência na arte equestre e as touradas. Quanto ao paralelismo normativo, a lei que vigorava anteriormente á Lei nº 92/95 permitia a existência de campos de tiro, onde nomeadamente se abatiam pombos bravos.
    Uma outra situação que aponta no sentido da licitude do tiro ao pombo, foi o facto de o Governo ter atribuído á recorrida posição jurídica de pessoa colectiva de utilidade pública e posteriormente a posição jurídica de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva, qualidade essa que se manteve, pelo que se esta prática fosse ilícita, o Governo não teria mantido esse estatuto, e mais, existe vários clubes de tiro em Portugal e o Governo confiou a uma Federação desportiva o seu fomento, regulação e disciplina. O STJ acaba por concluir que a lei em causa, visa proteger os animais de violências cruéis e gratuitas, sem justificação. No caso em questão não há sofrimento cruel e o STJ chega mesmo a dizer que esta prática até leva ao crescimento do número de pombos. Em suma, a prática de tiro ao pombo em voo é lícita, tendo como base da sua licitude, a tradição cultural.
    O Tribunal recorreu ao artigo 9º alínea d), da CRP, para justificar a tradição cultural que existe de tiro ao pombo. Também me parece que esta prática seja lícita, pois não entendo que estes animais sofram de forma cruel através desta prática e como o próprio STJ refere, os pombos, de forma alguma, estão em via de extinção, pelo que desta prática não advém consequências maiores para os pombos É verdade que estes pombos são abatidos, muitas vezes apenas como actividade recreativa, mas o que é certo é que existem muitos pombos, e com estas actividades até se estimula a sua reprodução, tal como refere o próprio STJ.

    Carolina Ganito, subturma2, nº 14528  

  4. Anónimo disse...

    Após análise do acórdão aqui publicado, e tendo também analisado outro acórdão que trata do mesmo assunto, Ac.29/10/2003 do Tribunal da Relação de Guimarães, verifica-se que a questão suscitada em ambos os casos é praticamente idêntica, embora as soluções alcançadas pelos dois Tribunais, se tenham demonstrado radicalmente diferentes.
    O STJ no Acórdão de 19/10/2004 manteve a sua posição quanto a este assunto, que foi sempre a de considerar o tiro aos pombos como um comportamento lícito face à Lei 92/95, já a Relação de Guimarães seguiu posição diversa, considerando ilícita esta prática, sendo também esta a posição que encontrou durante vários anos acolhimento junto dos tribunais de primeira instância que em vários acórdãos consideraram a prática de tiro aos pombos como ilegal face à Lei 92/95
    Partindo assim destes dois acórdãos, da anotação a estes feita pelo Dr. André Dias Pereira e da letra da lei tentar-se-á perceber se perante da Lei 92/95 é efectivamente lícita ou não a prática de tiro aos pombos.
    Quanto à problemática dos direitos dos animais, embora muito conexa com esta lei, não a irei aprofundar aqui, uma vez que já exprimi a minha posição quanto a este tema num outro comentário para o qual remeto.
    Assim cabe analisar atentamente os argumentos utilizados nos acórdãos em questão e tomar posição quanto à sua pertinência face ao direito português e mais especificamente à Lei 92/95:

    - Um dos primeiros argumentos usados no acórdão do STJ é que a morte dos pombos é rápida e não lhes provoca sofrimento cruel e prolongado, penso no entanto que este argumento não procede pelo simples facto de o nº1 do Art.1º da Lei 92/95 não estabelecer como requisito para a proibição o sofrimento cruel e prolongado dos animais, bastando para a sua aplicação a “morte sem necessidade” dos mesmos, assim independentemente das condições em que o animal morre aplica-se a proibição deste artigo, desde que essa morte não seja necessária.
    Mais se deve acrescentar que o problema da “necessidade da morte” não faz sentido ser sequer abordado neste caso e menos ainda quanto à possibilidade de substituição ou não dos pombos por alvos artificiais, no meu entender a “necessidade da morte” do nº1 do Art.1º refere-se não à necessidade da morte para a prossecução e existência da actividade, mas sim no sentido de saber se uma actividade estritamente lúdica pode justificar a morte de um animal ao ponto de se considerar a sua morte como necessária. Penso que a reposta a esta pergunta é negativa, perante a Lei 92/95 as actividades lúdicas não justificam a morte dos animais a não ser nos casos expressamente enunciados no nº3 do Art.1º, não podendo assim a questão cultural relevar enquanto critério de necessidade por não ter sido considerada o tiro aos pombos uma das excepções a apontar pelo legislador

    - Invocou-se também um argumento histórico quanto ao contexto em que a lei foi aprovada, nomeadamente o facto de o legislador ter acabado por não incluir a alínea que proibia o tiro a alvos vivos na versão final do diploma, mas isto não significa automaticamente que ele queira que o tiro ao pombo continue a ser lícito, até mesmo porque como refere o acórdão, não se consegue extrair da discussão parlamentar o motivo dessa supressão. Assim pode-se considerar que o motivo da não inclusão desta alínea resulta sim da crença por parte do legislador, de que basta o nº1 do Art.1º do diploma para proibir o tiro ao pombo por consistir esta modalidade desportiva, sem qualquer margem para dúvidas, num acto de violência injustificada contra animais. Mais se pode acrescentar que, se foram especialmente excepcionadas desta lei através do nº3 do Art. 1º certas actividades, nomeadamente a arte equestre, touradas, a caça e a e as experiências cientificas de comprovada necessidade, por se considerar que as mesmas são, tal como diz o acórdão do tribunal da relação de Guimarães “portadoras de uma normatividade específica capaz de suplantar os valores consagrados no diploma que define as regras protectoras da vida e integridade física dos animais” e se, tal como acrescenta o referido acórdão “foi em atenção a essa especificidade que o legislador, na própria norma protectora definiu as situações que considerava justificadas, apesar de estarem em oposição com os seus princípios” pode-se considerar que caso o legislador quisesse salvaguardar também o tiro ao pombo, o teria feito, se não o fez, é então evidente que não foi esse a sua intenção.
    A seguir é dito no acórdão do STJ que não deve ser considerado relevante o facto de oito deputados, cerca de quatro anos depois da publicação desta Lei, haverem apresentado um projecto de lei sobre a protecção dos animais com vista a tornar lícita a prática de tiro com alvos vivos desde que sob a égide de uma federação desportiva, penso que não se pode negar isto como indício de que de facto a não inclusão dessa alínea foi motivada pelos factos anteriormente enunciados. Refere o acórdão que também não deverá ser relevante para o caso a circunstância de os deputados de um dos grupos parlamentares haverem apresentado, cerca de dois anos depois da publicação da Lei, um projecto para a sua alteração no sentido da proibição de forma expressa das provas de tiro com animais vivos, no entanto isto não significa que a Lei 92/95 permitisse a prática de tiro ao pombo, antes quer dizer que por precaução e segurança jurídica é preferível legislar sobre isso expressamente, e não implicitamente como sucedia com a lei 92/95

    - Quanto aos argumentos de o animal em questão não se encontrar em vias de extinção e a prática de tiro até promover o crescimento de certos tipos de pombo que sem esta actividade se extinguiriam, concorda-se plenamente com André Dias Pereira quando diz que esta lei não visa proteger os animais em vias de extinção (uma vez que para este efeito existem leis especificas) mas sim todos os animais enquanto merecedores do respeito e da protecção dos seres humanos. Em relação à questão do maior desenvolvimento da espécie permitida pela actividade cita-se Fernando Araújo com a certeza de que esta frase espelha a falta de sentido do argumento «Reduzindo ad absurdum o argumento, dir-se-ia que ele sugere que certos animais deveriam pagar com a vida... o benefício da vida que lhe demos»

    - Voltando-se à questão do suposto valor cultural da actividade, não é ele de tal maneira relevante ao ponto do legislador o ter salvaguardado na feitura da lei, o que fez no entanto quanto a outras actividades, baseando-se justamente nesse argumento. Ora se o legislador tentou fazer uma operação de ponderação dos valores em presença e optou por criar uma cláusula geral de proibição salvaguardando certos casos como excepção, não se poderá fazer uma interpretação analógica dessas mesmas excepções, pois isso seria subverter o espírito da lei e retirar-lhe a sua utilidade. Assim conclui-se que apenas as actividades excepcionadas por via do nº3 do Art.1º da Lei 92/95 são justificadas pela tradição cultural portuguesa aos olhos do legislador, aliás é essa a única interpretação possível perante o nosso Código Civil Art.1º nº3 que nos orienta no sentido de “Na fixação do sentido e alcance da lei, o interprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” perante esta indicação a única hipótese de interpretação do Art.1º da lei 92/95 é a existência de uma cláusula geral proibitiva tendo como únicas excepções possíveis as elencadas no seu nº3, não comportando estas analogia.

    - Finalmente o argumento da Federação portuguesa de tiro ser desde 18/3/94 uma pessoa colectiva de utilidade pública, também não poderá proceder, pois este facto não quer dizer que se lhe deixe de aplicar lei posterior, assim a lei 92/95 veio revogar parcialmente o despacho de 4/4/94 quanto ao tiro a alvos vivos.

    Pode assim concluir-se que após uma análise crítica de todos os argumentos e valores em questão é impossível deixar de considerar que face à Lei 92/95 o tiro aos pombos é uma actividade ilegal.
    No entanto parece que teria trazido vantagens uma maior clarificação da lei no sentido da proibição desta prática, não porque não se possa inferir a proibição com uma análise ponderada, mas para evitar uma certa confusão e contradição jurisprudencial que acaba por causar insegurança jurídica, o que a todos prejudica.  

  5. Subturma 2 disse...

    Este Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça trata de uma temática muito sensível, a protecção dos animais. A questão central neste Acórdão é a de saber da legalidade ou ilegalidade em Portugal da modalidade de tiro aos pombos, isto é, com alvos vivos.
    Uma das actividades dos réus é a prática de tiro com chumbo com utilização de alvos vivos, neste caso pombos. Coloca-se aqui a questão de saber se a proibição do artigo 1º n.º1 da Lei nº 92/95, de 12 de Setembro abrange a actividade desportiva de tiro ao voo de pombos. Ora, antes de serem libertados para as provas de tiro ao voo são-lhes arrancadas penas da cauda e, no seu âmbito, são mortos. Não é revelado o processo de libertação dos pombos, nem o modo como se confrontam com os atiradores, nem o que acontece aos que não são atingidos, nem ao seu tempo de vida quando os tiros os não matam imediatamente. Nem revelam se os pombos abatidos são utilizados na alimentação humana ou se o não são por serem mortos sem condições de salubridade, o que demonstra bem e apenas o gozo pessoal dos atiradores.
    É certo, que constam das tarefas fundamentais do Estado a protecção e valorização do património cultural do povo português e que deve também considerar-se assente que a actividade desportiva de tiro aos pombos em Portugal é antiga e já uma tradição, não obstante, outra tarefa fundamental do Estado é a defesa da natureza e do ambiente, logo requer uma ponderação.
    A regra no nosso ordenamento é a do respeito pelos direitos dos animais, são assim proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, infligir-se a morte ou o sofrimento cruel e concursos, torneios, exibições ou provas similares que lhes provoquem dor ou sofrimento consideráveis, o que parece o nosso caso, pois só o facto de arrancar as penas aos pombos é susceptível de lhe causar dor e sofrimento, logo, deveria proibir-se o tiro aos pombos substituindo-os por um alvo lançado de um aparelho, solução com que se obtinha o mesmo resultado de pôr à prova a perícia dos atiradores sem o aspecto cruel que reveste o pombo acabado de libertar.
    Ao admitir-se que os animais, neste caso os pombos, possam servir como alvo, por isso trazer ao atirador um acréscimo de dificuldade e de divertimento pessoal, recusa-lhes qualquer espécie de protecção ou valor próprio, protecção essa, como referi em cima, tarefa fundamental do Estado.
    Concluo que a pratica de tiro aos pombos se enquadra na proibição do artigo 1º n.º1 da referida lei pois estamos perante uma violência injustificada contra animais, os pombos, considerada consistente em, sem necessidade, uma vez que podem ser substituídos, sem perda de eficácia, por pratos ou hélices, infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado do animal, dos pombos. Proibida é também a sua utilização, dos pombos, para fins de treino ou actividades semelhantes na medida em que daí resultem para eles dor ou sofrimento consideráveis, o que acontece. Por fim, faço notar, que não pode haver tradição, por mais antiga que seja, como esta do tiro aos pombos em voo que já tem mais de um século e meio, que justifique a infracção da lei que proíbe a prática de actividade de violência contra os animais.

    Marta Martins sub 2  

  6. subturma3 disse...

    Na minha modesta opinião, considero que, com o devido respeito, o Acórdão do STJ de 19 de Outubro prima pela sua verborreia jurídica, e é um bom exemplo da chamada “Juridicização da Ecologia”.
    Em causa está uma acção movida pela Sociedade A, uma associação zoófila, contra B e C, organizadores de um concurso de tiro aos pombos, por violação da Lei 92/95, de 12 de Setembro, que visa a protecção animal “contra violências cruéis ou gratuitas, para as quais não exista tradição cultural bastante”. O STJ vem a concluir que a prática desportiva de tiro ao voo de pombo não se subsume nos art.os 1º, n.os 1 e 3 e) da Lei 92/95, pelo que não é ilegal.
    Ora, passo a expor alguns argumentos que fundamentaram esta decisão:

    1. “Nessa tarefa interpretativa importa atentar em que o facto de a lei proibir, em regra, a morte desnecessária dos animais não significa que eles sejam titulares de direitos subjectivos à vida e à integridade física, certo que, segundo a nossa ordem jurídica, trata-se de coisas móveis (…) são coisas móveis, outrora designadas por coisas semoventes, apropriáveis, pelo que, pelo menos na ordem jurídica portuguesa, não faz qualquer sentido a afirmação no sentido de que a morte dos pombos por via de tiro ao voo ofende o seu direito à vida ou integridade física” – É certo que os animais não têm direitos, não poderão nunca a ser sujeitos de direito (remeto essa discussão para outro comentário deste blog, da minha autoria), e é certo que no nosso ordenamento eles são considerados coisas móveis (art.os 202º e ss. CC). No entanto, a tutela que a nossa lei dispensa aos animais não visa “essencialmente fins sociais”, como afirma o STJ, sendo de denotar que, conjuntamente com a evolução da espécie humana e do nosso Direito, também os valores axiológico-sociais atinentes à protecção dos animais vão, também, evoluindo, e demonstram, cada vez mais, uma preocupação com o seu bem-estar e integridade física, e com uma vivência salubre e digna, enquanto seres-vivos que se relacionam com o Homem e que estão inseridos na nossa sociedade, sem nunca lhes atribuindo verdadeiros direitos subjectivos mas impondo deveres às pessoas, e esse é que é o verdadeiro sentido que tem de ser dado aos vários textos, nacionais e internacionais, sobre a protecção dos animais;

    2. “A morte dos animais traduz-se na eliminação da sua estrutura vital, enquanto a sua lesão grave se consubstancia no resultado de uma acção ou omissão, ou seja, no ferimento, golpe profundo ou extenso ou dor profunda. O sofrimento cruel e prolongado dos animais é, por seu turno, a sua dor física assaz intensa e por tempo considerável (…) não se vislumbra que no âmbito da actividade desportiva em causa os pombos sejam afectados de sofrimento cruel e prolongado (…) a circunstância de antes da libertação dos pombos lhes serem arrancadas algumas penas da cauda, ao que parece com vista a imprimir-lhes a irregularidade do voo, não pode ser considerada nem lesão nem geradora de sofrimento cruel” – face a este argumento, cabe fazer uma pergunta: o que é a morte, senão a MAIOR LESÃO que qualquer ser-vivo pode sofrer? Não que, repito, os animais possuam um verdadeiro direito subjectivo à vida e à integridade física, mas um dos maiores valores subjacente tanto à Lei 92/95 como à própria Declaração Universal dos Direitos dos Animais é, exactamente, a tutela da sua existência condigna, especialmente quando se proíbem “violências injustificadas” (art.º 1º, n.º 1 Lei 92/95 e art.º 3º a) DUDA), quando se exige que “Se a morte de um animal é necessária, ela deve ser instantânea, sem dor ou angústia” (art.º 3 b) DUDA), ou quando se considera o Biocídio, “o acto que leva à morte de um animal sem necessidade”, um “crime contra a vida”, entre outras condutas. E mais acrescento, se a própria Declaração Universal dos Direitos dos Animais considera o abandono “um acto cruel e degradante” (art.º 6º b) DUDA), como é que o STJ não considera o arrancar de penas da cauda do pombo uma lesão cruel? Ainda para mais, tendo em conta que se destina a “imprimir-lhes a irregularidade do voo” para mero gozo dos atiradores...Fui consultar ao dicionário da Porto Editora o significado de lesão e, a não ser que, salvo devido respeito, o STJ possua uma versão bem diferente, lesão é (em termos não jurídicos) “dano, prejuízo” e dano é “qualquer mal ou ofensa pessoal; estrago, deterioração”…e mesmo em termos jurídicos lesão é a “afectação de um interesse juridicamente protegido; violação de um direito”, e tendo em conta que tanto a Lei 92/95 como a DUDA tutelam e proíbem as “as violências injustificadas contra animais”, é de meu entender que é bem claro (em termos jurídicos ou literais) que arrancar penas a pombos para lhes imprimir voos irregulares é uma clara lesão cruel e provocadora de sofrimento (a não ser que os pombos sejam insensíveis à dor), tal como a sua morte em pleno voo;

    3. “Acresce que o necessário enquadramento dos factos disponíveis na previsão e na estatuição legal cinge-se à morte dos pombos por via dos tiros” – Após uma leitura cuidada do art. 1º, nº1 da Lei 92/95, penso ser de fácil apreensão que a finalidade da norma em causa é proteger os animais contra quaisquer “violências injustificadas”, e não só as decorrentes da morte, pelo que é de meu entender que talvez o art.º em causa não tenha a melhor redacção, visto ter induzido em erro o próprio STJ;

    4. “Perante esse circunstancialismo (remeto para o Acórdão), é razoável que o intérprete conclua no sentido de que o legislador pretendeu manter a licitude da prática desportiva de tiro ao voo de pombos” – No entanto, a Lei 92/95, no seu art.º 1, n.º1 refere que “São proibidas todas as violências injustificadas contra animais”, assim como do seu n.º 3 e) resulta que “Utilizar animais para fins didácticos, de treino, filmagens, exibições, publicidade ou actividades semelhantes, na medida em que daí resultem para eles dor ou sofrimentos consideráveis, salvo experiência científica de comprovada necessidade”, ou seja, o legislador não quis, de modo nenhum, manter a licitude da prática desportiva de tiro ao voo de pombos, caso contrário, como se explica a redacção destes art.os, e como se explica que aquela actividade não esteja excepcionada, tal como a arte equestre e as touradas?

    5. “ (…) porque se não compreenderia que o Governo mantivesse à recorrida Federação de Tiro com Armas De Caça o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva, exercendo por via dele, no âmbito da organização e disciplina da actividade desportiva de tiro ao voo de pombos, além do mais, poderes de ordem administrativa, não obstante a lei proibir essa pratica” – faço minhas as palavras da colega Maria Victória Lopes-Cardozo e repito que, não obstante a Federação Portuguesa de Tiro ser pessoa colectiva de utilidade pública desde 18/3/94, o facto de entrar em vigor, posteriormente, uma nova lei que proíbe a prática daquela actividade, derroga o despacho de 4/4/94 quanto ao tiro a alvos vivos;

    6. “ (…) os pombos reproduzem-se facilmente, não há risco da sua extinção, e a própria prática desportiva em causa constitui um facto de promoção do crescimento da espécie” – salvo devido respeito, e permitam-me alguma jocosidade, mas penso que, segundo o entendimento do STJ, não há razão para não criarmos novos desportos, como o tiro ao cão, ou ao gato, ou ao próprio homem: são espécies que se reproduzem facilmente, não havendo risco de extinção, e a prática desportiva promoveria, deste modo, o crescimento da espécie…e mais, antes de os largarmos, é melhor partir-lhes as pernas para imprimir uma fuga mais irregular e providenciar maior gozo ao desportista…O objectivo da legislação de protecção animal, como a Lei 92/95 e a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, é precisamente proteger e tutelar a vida animal, como seres-vivos que são, que interagem e se inserem na nossa sociedade, em LADO ALGUM se faz referência à protecção e promoção de uma espécie animal através da sua morte e/ou utilização em práticas desportivas. Tal conduta é expressamente proibida, quer no art.º 1, n.º 1 e 3 e) da Lei 92/95, quer na própria DUDA, art.º 2º b) – “O homem, enquanto espécie animal, não pode atribuir-se o direito de exterminar os outros animais, ou explorá-los (…)” – e art.º 10º – “Nenhum animal deve ser usado para divertimento do homem”.

    7. Por último, “ (…) o tiro ao voo de pombos, em paralelo com a arte equestre e as touradas, traduz-se numa modalidade desportiva com tradição e relevância em Portugal (…) Por isso, no caso espécie, a morte infligida aos pombos não é meramente gratuita ou improvisada, porque se inscreve numa prática desportiva já antiga, integrada na tradição, como processo de ligação do passado ao presente, e, consequentemente faz parte do nosso património cultural, a exemplo do que ocorre com as touradas e com a arte equestre” – É verdade que não podemos descurar o nosso passado e as nossas tradições, pois elas integram o nosso património cultural, fazem parte da nossa identidade nacional, e diferenciam-nos dos outros povos; contudo, como a nossa sociedade e o pensamento humano está em constante evolução, há valores que se vão relevando e se mostram incompatíveis com outros já previamente estabelecidos, sendo necessária, no seu confronto, uma ponderação dos mesmos, à luz de um princípio da proporcionalidade – é o que acontece com os princípios de Direito do Ambiente e certas tradições seculares. No caso em apreço, tendo o legislador estabelecido, no art.º 1º, n.º 1 da Lei 92/95, uma proibição genérica de maus-tratos a animais, e excepcionado, expressamente, a arte equestre e as touradas, é de meu entender estarmos perante uma tal situação em que um valor de protecção animal (neste caso, a tutela dos pombos) se sobrepôs ao valor cultural da tradição, caso contrário, aquela situação estaria igualmente excepcionada, sendo que, nesta situação, não acredito que se poderá recorrer à analogia, sob pena de subverter a real intenção do legislador e o próprio espírito da lei;

    Em conclusão, considero errónea a decisão do STJ e que, face à lei 92/95, o tiro aos pombos é uma prática ilícita. Repito que não podemos nunca descurar o nosso património cultural, no entanto, sem adoptar uma posição ecocentrista, julgo que, face à constante evolução da raça humana e às vicissitudes que o nosso pensamento vai sofrendo, há certos valores que vão ganhando uma relevância acrescida e, como tal, no confronto com algumas tradições “dogmatizadas”, terá de ser ponderado o seu efeito útil e a sua contribuição, quer para nós, enquanto povo e “governantes” da Terra, quer para os animais, que partilham o planeta connosco e com os quais lidamos e interagimos, em regra, numa base diária.

    Pedro Miguel do Nascimento, n.º 14.007, subturma 3  

  7. Anónimo disse...

    Nos nossos dias tem-se colocado com muita frequência a questão da existência/ não existência dos direitos dos animais. Não cabe aqui tecer comentários sobre esta questão, desde logo porque já tive oportunidade de me pronunciar sobre esta problemática (comentário feito no dia 25 de Março de 2008, ao texto publicado a 18 de Março de 2008), mas sim fazer uma breve análise do acórdão de 19/10/2004 do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), acórdão este que é proferido na sequência de uma decisão anterior do Tribunal da Relação de Guimarães (acórdão de 29/ 10/ 2003).
    O Tribunal da Relação de Guimarães, chamado a pronunciar-se sobre a questão da licitude/ ilicitude da prática desportiva de tiro aos pombos em voo, afirma que tal actividade é ilícita, apelando, para o efeito, à uma interpretação actualista da lei n.º 92/95, de 12/9.
    Contudo a jurisprudência não é unânime. O STJ, em resposta ao recurso interposto, vem contrariar a decisão do Tribunal da Relação, concluindo pela licitude da prática de tiro aos pombos em voo, uma vez que na óptica deste tribunal a actividade em questão “não se enquadra na proibição a que se reporta o proémio e o n.º 1 do art. 1º, nem o seu n.º 3, alínea e) da Lei n.º 92/95, de 12/9 (…)”.

    Não me parece, salvo o devido respeito, que a solução do STJ seja a mais adequada. Vejamos alguns dos principais argumentos utilizados pelos defensores da licitude do tiro aos pombos.
    I. O tiro aos pombos faz parte da tradição portuguesa
    II. A lei permite as touradas, a pesca desportiva, a caça, a arte equestre e a investigação científica
    III. Na pesca desportiva os peixes são sujeitos a um sofrimento prolongado
    IV. Os pombos têm uma morte rápida, sem sofrimento cruel e prolongado
    V. O tiro aos pombos contribui para a sobrevivência da espécie “zuritos”
    VI. O tiro aos pombos é necessário porque não é substituível
    VII. A lei admite as “largadas” nos campos de treinos de caça

    Procedemos agora à análise destes argumentos.

    I. O tiro aos pombos faz parte da tradição portuguesa
    O STJ justifica este argumento tendo em conta o número de clubes de tiro existente no país, mas a prática do tiro não se confunde com a prática de tiro aos pombos. Na verdade em Portugal, ao contrário da prática do tiro (que é uma modalidade olímpica), a pratica de tiro aos pombos é uma actividade bastante restrita e invulgar. Esta actividade desportiva não faz parte da tradição portuguesa, nem implica qualquer valor cultural, não havendo deste modo qualquer fundamento legal para a excepção da sua permissão. Tal como afirma o Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia, não existe em Portugal qualquer costume contra-legem, derrogatório da proibição geral constante da Lei n.º 92/95, “ por não se verificarem os seus elementos constitutivos, até porque sempre houve a preocupação de acatar as várias decisões jurisprudenciais que impediram provisoriamente a sua prática, coisa que seria impensável se houvesse, verdadeiramente, uma prática costumeira, que forçosamente se sobreporia a uma aplicação do direito legal”


    II. A lei permite as touradas, a pesca desportiva, a caça, a arte equestre e a investigação científica
    Quanto a este argumento pode-se dizer em primeiro lugar que o legislador excluiu expressamente estas actividades do âmbito da proibição geral. Penso que se o legislador não fez o mesmo quanto ao tiro aos pombos é porque se deve considerar tal prática proibida nos termos do artigo 1º, n.º 1, da lei 92/95. Acrescenta-se ainda que o facto de o DL n.º 202/2004, de 18/8 autorizar a caça aos pombos não justifica o sofrimento cruel e prolongado e as graves lesões que tal actividade causa aos pombos.
    Na minha opinião as touradas são cruéis e desnecessárias. Não vejo a utilidade desta prática nem percebo como é que se pode considerar que tais actividades fazem hoje parte da cultura de um país. Como é que podemos qualificar como cultural tamanha barbaridade contra os animais? Penso que não devemos ficar presos ao passado. Hoje em dia as touradas não correspondem a uma prática aceite pela maioria da população, tal como já foi em tempos. Existe hoje basicamente um consenso quanto à tutela dos animais: não têm direitos, mas devem ser tutelados e esta tutela resulta dos princípios e valores que fazem parte do contexto social do Homem como animal racional.


    III. Na pesca desportiva os peixes são sujeitos a um sofrimento prolongado
    Ao contrário do que acontece no tiro aos pombos, na pesca desportiva, para além da ordem jurídica prever esta actividade, não é possível substituir os peixes. Os pombos podem perfeitamente ser substituídos, conforme alega a recorrente, por pratos e hélices. Não é ainda possível comparar a situação dos peixes com a dos pombos uma vez que estes desde sempre foram privados da sua liberdade: sempre viveram em gaiolas, arrancam-lhes cruelmente as penas dificultando o seu próprio voo.


    IV. Os pombos têm uma morte rápida, sem sofrimento cruel e prolongado
    O STJ define a violência injustificada como sendo um desnecessário acto de força ou de brutalidade contra os animais. Partindo desta definição este tribunal conclui que na actividade desportiva em causa “ não se vislumbra que os pombos sejam afectados de sofrimento cruel e prolongado”. Penso que também este argumento não é de aceitar. Quando um animal é atingido por uma bala de chumbo, mesmo que não morra de imediato, ficará numa situação de sofrimento cruel e prolongado e com lesões graves. O animal que se encontrar nestas condições terá pouquíssimas possibilidades de sobreviver e mesmo no caso de conseguir sobreviver não será por muito mais tempo, nem tão pouco terá alguma “qualidade de vida” devido ao facto de lhes terem sido retiradas as penas da cauda. Mesmo que não morram de imediato, estes animais têm as horas contadas uma vez que normalmente são mortos no fim do dia pelos assistentes de campo, que os partem o pescoço.


    V. O tiro aos pombos contribui para a sobrevivência da espécie
    Este é o chamado argumento da não identidade. O STJ diz que a prática de tiros aos pombos não põem em causa a espécie porque os pombos reproduzem-se com muita frequência, e a própria prática constitui um incentivo ao seu crescimento. Este argumento também é de rejeitar. Por um lado porque o objectivo da Lei n.º 92/95 não é a protecção das espécies em via de extinção, mas sim a protecção dos animais, enquanto merecedor do respeito e da protecção dos seres humanos.
    Por outro lado, aceitar o argumento da não identidade seria aceitar a ideia segundo a qual os pombos só existem, e só continuam a existir, porque alguém realiza esta prática. No fundo é como se se dissesse que os pombos até deviam agradecer pelo pouco tempo de vida que têm porque se não fosse esta prática nem este pouco tempo teriam. Definitivamente não é de aceitar esta ideia, não vamos cobrar a vida deles tirando-lhes esta mesma vida, nem sujeitando-lhes a sofrimento cruel.


    VI. O tiro aos pombos é necessário porque não é substituível
    Ao contrário do que dizem os defensores desta modalidade desportiva, os pombos são plenamente substituíveis por pratos e hélices. Tanto os pombos como os pratos e as hélices têm voo imprevisível e são difíceis de alvejar. O STJ, numa lógica de ponderação de valores, conclui pela necessidade de utilização dos pombos para esta modalidade desportiva, servindo-se para este efeito do facto de não haver riscos para a extinção da espécie, de tal actividade, na óptica do STJ, contribuir para o desenvolvimento de uma actividade económica de bens e serviços, com a consequente produção de riqueza individual e colectiva, e de uma pretensa “longa tradição” da sociedade portuguesa.
    Contudo, tal como o Dr. André Dias Pereira, penso que o conceito de necessidade deve ser entendido num sentido mais rigoroso: será justificado tanta violência sobre os animais, quando o k está em causa é apenas a perícia na prática do tiro ao alvo em movimento e a diversão dos seus praticantes? Parece-me claramente que não. Ao contrário do que diz o STJ, na minha opinião as animais não são simples coisas móveis, são categoria especial de objectos de direito. Não é de aceitar que o homem possa maltratar sem necessidade e matar o animal quando bem entender. A protecção do animal resulta da cláusula dos bons costumes, que, tal como afirma o Professor Doutor Menezes Cordeiro, está “coração do direito civil”.


    VII. A lei admite as “largadas” nos campos de treinos de caça
    Não é possível comparar estas duas actividades, embora exista do ponto de vista descritivo uma semelhança entre a prática de tiro aos pombos e as largadas nos campos de treino de caça. Neste ultimo caso trata-se de uma actividade permitida por lei quando respeitadas determinadas condições, é uma actividade instrumental a uma actividade lícita (excepcionalmente, Lei 92/95, art. 1º, n.º 3, alínea f)). Deste modo, tal como conclui o Tribunal da Relação de Guimarães, “ não existe uma equivalência normativa das situações, pelo que não pode ser aplicado o regime jurídico da situação regulada à situação a regular”.


    Poderíamos indicar e debater outros argumentos, mas julgo que os enunciados são suficientes para defender a ilicitude da prática de tiro aos pombos em voo. Resta apenas dizer, para concluir, que esta modalidade desportiva é proibida expressamente em vários países da Europa.




    Dulcelina Sanches Rocha
    N.º 15008
    Subturma 2  

  8. subturma3 disse...

    Antes de mais, uma pequena nota, que levanta um pouco o véu da conclusão deste comentário, mas não pode deixar de se louvar a corajosa e acertada decisão do Supremo Tribunal de Justiça, numa altura em que os ambientalistas tanto pressionam para a protecção de tudo e mais alguma coisa.

    À partida entende-se porque se pode considerar a decisão do STJ incompatível com o espírito da Lei 92/95, dado que a mesma não explicita a proibição desta tradição, mas pode ser interpretada como tal. A verdade é que esta lei carece de uma revisão, ou mesmo de uma nova lei que a venha revogar, pois esta prática legislativa de criar uma regra muito geral e depois ir abarcando excepções, na sua maioria de origem jurisprudencial, dá azo a uma incerteza e latitude jurídicas enormes, sendo estas situações que causam grandes discussões em torno de assuntos como o presentemente abordado.

    Cingindo-nos à lei aplicável, ainda que com as deficiências apontadas, é de referir que o art.1/3 não parece ser taxativo, dada a letra do art. 1/1 do mesmo diploma. Isto vem permitir que, nos casos específicos em que a aplicação desta lei se imponha, o juiz tenha uma ampla margem de interpretação desse art. 1/1 para o proferimento de uma decisão. É o que sucede neste acórdão. Com efeito, o referido artigo foi alvo de uma interpretação ampla e o STJ acaba por colocar o tiro aos pombos no campo das excepções às proibições de maus tratos a animais devido ao enquadramento como tradição.

    Este enquadramento é, sem sombra de dúvida, o mais acertado. Mais uma vez, foram mencionadas, a propósito da defesa dos animais, legislações estrangeiras que “tratam os animais de forma superior”, criticando-se o legislador português por continuar a ignorar esta situação. Nada mais errado. O legislador nacional, quando muito, até será demasiado proteccionista, devido às pressões a que também está sujeito por certos grupos. Um país tão antigo e rico em tradições como esta não deve, de forma alguma, eliminar aquilo que lhe resta do passado, além dos monumentos inanimados, pelo que, mais uma vez, se enaltece a decisão do STJ.

    Para mais, também é referido que o único uso destes animais é o desporto. Outro puro engano. Além de parte deles servir de alimentação aos próprios atiradores e pessoal afim, os restantes pombos mortos são processados e transformados como boa parte dos ingredientes que compõem as rações que todos damos aos nossos animais de estimação. O mesmo exemplo serve aos touros de morte, cuja carne está nas nossas mesas todos os dias.

    Os arts. 9º e 78º da nossa lei máxima protegem exactamente tradições como esta. Também não se detecta na morte de alguns pombos por desporto (os quais terão depois as finalidades já referidas, para além de alvos desportivos) uma tutela constitucional do ambiente que impeça a preservação de tal prática. Releva aqui também a posição tomada a propósito dos animais de circo – “não existem, nem nunca deverão existir direitos dos animais”, pelo que mais uma vez se consideram exageradas pretensões como a da Associação “Animal”, que querem proteger o ambiente ao mais pequeno pormenor, sem consideração pela história e eventuais consequências económicas.

    O art. 66 CRP e os arts. 9 e 76 CRP não chegam assim a estar realmente em conflito neste caso, embora fosse essa a intenção da Associação “Animal” pelo que a decisão do STJ nunca poderia ser outra que não a tomada, sendo tal explícito no corpo do acórdão e também no último ponto do sumário do mesmo.


    Américo Nuno Gomes
    Nº 14022
    Subturma 3  

  9. Anónimo disse...

    A questão fulcral aqui em análise é, a meu ver, e tão só, salvo melhor opinião, a de saber de se a citada Lei 92/95 considera ou não como proibida a prática de tiro aos pombos. É, pois, sobre este tema que pretendo debruçar-me.
    Creio que a melhor forma de determinar a existência ou não da proibição, será a análise atenta do art.º 1º., nº. 1 da Lei referida, nomeadamente dos conceitos indeterminados que nele se vertem e que carecem de um sentido concreto no caso sub Júdice.
    Abstenho-me de fazer um apanhado das posições adoptadas pelos vários Tribunais, tarefa que me parece ter já sido brilhantemente feita pelos meus Colegas.
    Na minha opinião o STJ interpretou a Lei no sentido correcto, tendo explorado todas as vias interpretativas possíveis e delas retirado o sentido mais conforme com o espírito da mesma.
    No que diz respeito ao elemento histórico, o facto de os vários projectos dos trabalhos preparatórios terem sempre referido expressamente a proibição da prática de tiro a alvos vivos, e o facto de tal não ter passado para a versão definitiva do diploma, induz o intérprete aplicador a retirar daí o sentido de que o legislador não quis proibir a actividade. A argumentação da autora pode colocar dúvidas, alegando que a proibição decorre do sentido literal do artº. 1º., nº. 1, mas ainda assim, o facto de se ter eliminado esta proibição não pode ser ignorado.
    Como auxiliar interpretativo temos ainda o facto, a meu ver bastante relevante, de o Governo ter atribuído o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública à Federação de Tiro com Armas de Fogo, que inclui nas suas actividades a prática aqui em discussão. O Governo não iria atribuir este estatuto a uma entidade que tivesse como intuito violar a Lei. Este argumento não é essencial mas é indiciador de uma interpretação pró tiro a alvos vivos por parte do Governo.
    No entanto como critério essencial de análise do artº. 1º., temos de definir muito bem o que se entende por “sem necessidade”.
    Não há, a meu ver, melhor interpretação que aquela que foi vertida no acórdão do STJ, ou seja, que haverá que proceder a uma ponderação entre a necessidade de protecção dos animais contra a perpetuação das tradições culturais do Homem. Neste caso, entende o mesmo, prevalece a segunda, a meu ver bem (de iure condito). Lembro que falo estritamente em termos do direito aplicável, não procurando aqui qualquer solução que passe pela maior justeza da protecção ou da defesa do património cultural. Apenas entendo que, dentro do nosso sistema jurídico não há espaço para se interpretar esta questão de outra forma mais protectora atentos os vectores legais em análise.
    Assim, uma vez que não há aqui, objectivamente, uma situação de sofrimento cruel e prolongado dos animais, já que estes morrem por um tiro de caçadeira, o que determina uma morte “limpa” (passe a pobreza da expressão), não se pode argumentar que a prática não é permitida com este fundamento.
    O objectivo desta Lei é a protecção dos animais, mas não incondicional, uma vez que, entrando esta protecção em conflito com fins do Homem juridicamente tuteláveis, como o são a defesa do património cultural, ela deverá ceder, desde que não implique práticas não admissíveis como serão a tortura de animais.
    A prática de tiro a alvos vivos, nomeadamente a pombos, faz sem sombra de dúvida, parte do nosso património cultural. Basta que as pessoas tenham um pequeno contacto com as zonas rurais do nosso país para entenderem a relevância social de eventos festivos em que estas práticas acontecem com muita frequência. Este carácter de tradição traduz-se pois, a meu ver, numa justificação da morte dos animais que determina a não ilicitude da actividade de tiro a alvos vivos.
    Tal é o que me cumpre dizer acerca deste assunto, acabando por concluir que esta solução não é certamente uma solução agradável nem admissível numa sociedade supostamente evoluída.
    Deveria ser encontrada uma forma por parte do legislador de reduzir o papel da tradição, que muitas vezes dá lugar a actos de barbarismo (próprios de tempos em que a sociedade era muito atrasada a nível humano), com o intuito de incluir novas premissas interpretativas que permitissem o afastar de soluções abstrusas como a que aqui se analisa.
    A sociedade já evoluiu, bem como os seus valores, e não é admissível que fiquemos eternamente agarrados a um passado que já pouco tem que ver com os tempos de hoje, e que não encontra fundamentos reais, apenas resquícios de fundamentos jurídicos já sem base de sustentação no quadro fáctico actual, tudo a necessitar de adaptação urgente.

    João Freitas, aluno º. 14627
    Sub-turma 2  


 

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