Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 544/01 (REN)

Acórdão n.º 544/01

Proc. nº 194/01
1ª Secção
Relatora: Maria Helena Brito


Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:

I

1. Em 26 de Outubro de 1992, A interpôs, junto do Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso de anulação de um despacho do Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, datado de 17 de Agosto de 1992, que indeferiu o recurso hierárquico que havia interposto para o Ministro do Planeamento e da Administração do Território da resolução que recaiu sobre o parecer da Comissão de Coordenação da Região (CCR) de Lisboa e Vale do Tejo desfavorável ao seu projecto de loteamento industrial de uma parcela de terreno, sito em..., freguesia e concelho do Montijo.
A entidade recorrida, na resposta de fls. 22 e seguintes, pugnou pela absolvição da instância e, subsidiariamente, pelo não provimento do recurso.
Nas respectivas alegações (fls. 38 e seguintes), o recorrente apresentou, entre outras, as seguintes conclusões:
"[...]
4ª - O acto recorrido enferma de violação de lei, sob a forma de erro sobre os pressupostos de direito e de facto e aplicação de normas inconstitucionais, tendo violado os arts 168º/1/a) e n.º 2 da CRP, 4º e 17º do DL n.º 93/90, 24º/3 e 30º/1 do DL n.º 400/84, pois
a) O DL n.º 93/90 restringiu o direito de propriedade (artº 62º da CRP), direito fundamental sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias, ex vi do artº 17º da CRP, sem que tenha existido prévia lei de autorização legislativa, violando o disposto no artº 168º/1/a) e 2 da Constituição da República Portuguesa (v. Acs. do Trib. Const. in DR, II Série, de 20/11/91);
[...]."

A entidade recorrida apresentou também alegações (fls. 60 e seguintes), tendo nomeadamente sustentado o seguinte:
"[...]
Pretende o Recorrente que o acto impugnado incorre no vício de violação de lei, por ter sido praticado ao abrigo de um diploma inconstitucional e padecer de erros sobre os pressupostos de facto e de direito.
Desde logo advoga que o regime da REN configura uma clara limitação do direito de propriedade, contemplado no art. 62º da CRP.
A este respeito, dir-se-á que o direito de propriedade, como direito constitucionalmente garantido, não é um direito absoluto, antes comporta restrições necessárias à defesa de outros direitos e interesses com igual consagração constitucional.
Haja em vista os denominados direitos sociais, designadamente, a defesa do património cultural, da protecção da natureza e do equilíbrio ecológico – nº 2, do art. 66º, da CRP.
Haverá, pois, que conjugar o poder de gozo do bem objecto do direito de propriedade com uma das tarefas fundamentais do Estado, plasmadas na alínea e), do art. 9º, do texto constitucional, que se transcreve:
«Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território.»
definindo-se este como a tradução, no espaço, das políticas económica, social, cultural e ecológica da sociedade (vide Carta Europeia de Ordenamento do Território), pressupõe a utilização racional dos recursos naturais, tendo por base o solo, e por finalidade o desenvolvimento equilibrado das populações urbanas e rurais, com vista a uma melhoria das condições de vida.
Na demarcação de espaços onde uma classe de uso do solo é dominante, haverá que contrapor, no caso dos autos, espaços naturais (onde as medidas de salvaguarda dos recursos naturais dominam sobre as actividades produtivas), de que são exemplos, entre outros os cordões dunares, estuários, sapais, zonas húmidas, florestas de protecção, parques e reservas naturais, praias e formações geológicas, e espaços industriais, onde se pretende efectivar a operação de loteamento, com os riscos ambientais que isso envolve, podendo «vir a afectar o equilíbrio ecológico da área, que se considera de manter» – fls. 214 do Instrutor.
Invoca, ainda, o Recorrente que o regime da REN foi estabelecido por decreto-lei, sem autorização prévia da Assembleia da República.
Deliberadamente (e diz-se deliberadamente, porque o enfoque à Lei de Bases do Ambiente – Lei 11/87, de 7 de Abril – é feito no próprio preâmbulo do Decreto-Lei nº 93/90), o Recorrente ignorou que este diploma foi publicado depois daquela Lei de Bases, que define «as bases da política de ambiente, em cumprimento do disposto nos artigos 90º e 66º da Constituição da República» seu art. 1º – política de ambiente de que são instrumentos a RAN e a REN – alínea d), do nº 1, do art. 27º.
Logo, o Governo apenas necessitaria de autorização legislativa para estabelecer o regime da REN, se a Assembleia da República não tivesse aprovado, em data anterior, a Lei de Bases do Ambiente.
E não foi o caso.
O acto recorrido baseou-se, pois, em normas que não diminuem o alcance do conteúdo dos preceitos constitucionais, estando a sua conformidade constitucional salvaguardada pelo nº 2, do art. 18º da CRP, inexistindo, em consequência, o alegado vício de violação de lei, por desrespeito de normas constitucionais.
[...]."

O representante do Ministério Público, no parecer de fls. 74 v.º a 75º v.º, sustentou que o recurso não merecia provimento.

2. Por acórdão de 21 de Janeiro de 1998, a 1ª Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, entre outros pelos seguintes fundamentos (fls. 81 e seguintes):
"[...]
Alega mais o recorrente – conclusão 4 a) – que o acto recorrido enferma de violação de lei, sob a forma de erro sobre os pressupostos de facto e direito e, designadamente, por aplicação de normas inconstitucionais, por ter sido praticado ao abrigo de um diploma inconstitucional à luz do artº 168º-1 b) e 2 da Constituição (por lapso refere-se a al. a)).
Este diploma, porém, não foi emitido «a descoberto», mas, como diz a Entidade Recorrida e resulta do expresso no seu relatório preambular e se considerou no acórdão deste STA de 25/6/92 (Ap. DR de 16/4/96, págs. 4276) no seguimento do disposto no artº 27 da Lei de Bases do Ambiente – Lei nº 11/87, de 7 de Abril – que fixou as directrizes essenciais, a disciplina básica do regime jurídico em matéria da política do ambiente, de que é instrumento a REN.
E trata-se de um decreto-lei de desenvolvimento daquela Lei, que não desrespeita, mantendo-se dentro dos seus princípios fundamentais e que não dispõe sobre matéria abrangida na al. b) do referido artº 168º.
Improcede, assim, este arguido vício de violação de lei.
[...]".

3. A. recorreu do referido acórdão para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (fls. 101), tendo nas respectivas alegações (fls. 105 e seguintes) apresentado, entre outras, as seguintes conclusões:
"[...]
8ª - O acto recorrido enferma de violação de lei, sob a forma de erro sobre os pressupostos de direito e de facto e aplicação de normas inconstitucionais, tendo violado os arts. 168º/1/b) e nº 2 da CRP, 4º e 17º do DL nº 93/90, 24º/3 e 30º/1 do DL nº 400/84, merecendo o douto acórdão recorrido censura por haver decidido em contrário, pois (cfr. texto, nºs 14 a 17):
a) O DL nº 93/90 restringiu o direito de propriedade (artº 62º da CRP), direito fundamental sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias (e ao regime de reserva legislativa), ex vi do artº 17º da CRP, sem que tenha existido prévia lei de autorização legislativa, ou sem que a Lei 11/87 contenha suficiente densificação dos princípios gerais aplicáveis ao instituto, que permitam aferir da conformidade do regime legal instituído com aquela lei reforçada, violando o disposto no artº 168º/1/b) e 2 da CRP;
b) O pedido de loteamento formulado pelo recorrente não contemplou qualquer construção na faixa de 200 metros interior à linha de praia-mar, destinando-se essa faixa a zona verde, como expressamente foi admitido pela entidade recorrida;
c) Não estando prevista nenhuma acção para aquela faixa, o equilíbrio ecológico daquela área nunca poderia ser prejudicado, não se justificando a sua sujeição ao regime previsto nos arts. 17º e 4º/1 do DL nº 93/90, uma vez que a ratio daqueles preceitos abrange apenas as acções que pela sua expressão física directa ou potencialidade imediata possam pôr em causa o equilíbrio ecológico, o que não se verifica no caso em apreço;
d) A simples inclusão de uma parcela de terreno em zona sujeita a regime transitório da REN – o que se impugna no caso vertente – não permite per se indeferir as pretensões dos praticantes (cfr. artº 4º/2 e 17º/1 do DL nº 93/90);
e) O prédio a lotear não se integra em qualquer das alíneas do Anexo II ao DL nº 93/90, pois encontra-se na sua quase totalidade atulhado e terraplanado, não apresentando, em resultado da transformação, características que o tornem apto a integrar a REN;
g) A parte não terraplanada e atulhada é composta de salinas, categoria não prevista em qualquer das alíneas do referido anexo;
[...]".

A entidade recorrida também alegou (fls. 129 e seguintes), sustentando que o recurso jurisdicional devia ser rejeitado ou, se assim não se entendesse, julgado improcedente.
O recorrente respondeu a certas questões prévias suscitadas pela entidade recorrida (fls. 140 e seguintes).
O Ministério Público, no parecer de fls. 150 e v.º, pronunciou-se no sentido da rejeição do recurso.

4. Por acórdão de 16 de Janeiro de 2001, o Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso (fls. 155 e seguintes). Pode ler-se no texto do acórdão, para o que aqui releva, o seguinte:
"[...]
8.2.2. Alega ainda o recorrente na conclusão 8ª que o acto recorrido enferma de violação de lei, sob a forma de erro sobre os pressupostos de direito e de facto e aplicação de normas inconstitucionais, violando os artºs 168º, nº 1, al. b) e nº 2 da CRP, 4º e 17º do DL nº 93/90, 24º/3 e 30º/1 do DL nº 400/84, merecendo o Acórdão recorrido censura por haver decidido em contrário, porquanto o DL nº 93/90 restringiu o direito de propriedade (artº 62º da CRP), direito fundamental sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias (e ao regime de reserva legislativa) ex vi do artº 17º da CRP sem que tenha existido prévia autorização, ou sem que a Lei nº 11/87 contenha suficiente densificação que permitam aferir da conformidade do regime legal instituído com aquela lei reforçada, violando o disposto no artº 168º/1/b e 2 da CRP.
O Acórdão recorrido decidiu, e bem, que o DL nº 93/90 não foi emitido «a descoberto», mas antes no seguimento do disposto no artº 27º da Lei de Bases do Ambiente (Lei nº 11/87, de 07 de Abril), que naquele normativo (nº 1, al. a)) determina serem instrumentos de política do ambiente e do ordenamento do território, além da reserva agrícola nacional, a reserva ecológica nacional.
Trata-se, assim, de uma lei de bases, sendo o DL nº 93/90, um decreto-lei de desenvolvimento que está submetido à respectiva lei de bases (nº 2, 2ª parte, do artº 115º da CRP). Não explica o recorrente onde é que aquele diploma legal extravasa os parâmetros ou quadro legal de desenvolvimento fixados na lei de bases, e era a ele que o competia fazer, para este T. Pleno poder emitir pronúncia sobre tal questão.
Acresce que, hoje, o direito de propriedade constitucionalmente reconhecido não é um direito absoluto, estando, antes, sujeito a limites intensos, sendo particularmente relevantes os que ocorrem no domínio urbanístico e do ordenamento do território, a ponto de se questionar se o direito de propriedade inclui o direito de construir – jus aedificandi – ou se este radica antes no acto administrativo autorizativo (licença de construção), pelo que a utilização do uso dos solos está sujeita a uma rede complexa de planos de ordenamento, autorizações, licenças, proibições, materialmente constitutivos de ónus ou restrições socialmente adequadas, nuns casos, ou de sacrifícios especiais ligitimadores de um direito indemnizatório, noutros casos (para maior desenvolvimentos, os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in «Constituição da República Portuguesa Anotada», 3ª edição, págs. 333 e 349).
Não se vislumbra, assim, em que é que o Acórdão recorrido violou as invocadas leis constitucionais e leis ordinárias que lhe são assacadas na conclusão 8ª.
Quantos aos erros nos pressupostos de facto incluídos nas diversas alíneas b) a g) da referida conclusão 8ª, não pode sobre eles emitir pronúncia este T. Pleno, atentas as limitações de cognição impostas pelo nº 1 do citado artº 21º do ETAF.
Improcede, assim, também a conclusão 8ª da alegação do recorrente.
[...]."

5. A. interpôs recurso do referido acórdão de 16 de Janeiro de 2001 para o Tribunal Constitucional (fls. 184), ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, com fundamento na inconstitucionalidade orgânica e material do Decreto-Lei n.º 93/90, de 10 de Março, por violação dos artigos 62º e 168º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 da Constituição ("na redacção vigente no momento em que a questão foi suscitada nos autos", a que correspondem actualmente os artigos 62º e 165º, nº 1, alínea b)).
O recurso para o Tribunal Constitucional foi admitido por despacho de fls. 186.
Já no Tribunal Constitucional, foi proferido o despacho de fls. 189 e v.º, mandando notificar o recorrente para completar o requerimento de interposição do recurso, indicando quais as normas do Decreto-Lei n.º 93/90, aplicadas na decisão recorrida, que considera inconstitucionais e que pretende submeter à apreciação deste Tribunal, qual a norma ou princípio constitucional violado por cada uma dessas normas, bem como qual a peça processual em que suscitou a questão da inconstitucionalidade.
Notificado deste despacho, o recorrente veio dizer o seguinte (fls. 190 e v.º):
"1. As normas do Decreto-Lei n.º 93/90, de 10 de Março, aplicadas na decisão recorrida e que o recorrente considera inconstitucionais, pretendendo submeter à apreciação deste Tribunal, são todas as normas legais constantes do citado diploma (Decreto-Lei nº 93/90, de 10 de Março) e em especial, dados os seus efeitos, as normas que constam dos artigos 3º, 4º e 17º desse mesmo diploma (as quais estabelecem um regime proibitivo de uso de solos – áreas REN).
2. No entendimento do recorrente, o supracitado diploma legal – o conjunto de todas as suas normas e em particular os seus artigos 3º, 4º e 17º – enfermam de inconstitucionalidade orgânica por regularem matéria atinente «a direitos liberdades e garantias» sem terem sido precedidos da necessária autorização legislativa da Assembleia da República (violando desse modo o art. 165º/1/b) e 2 da CRP, por referência aos arts. 62º e 17º do diploma fundamental) e de inconstitucionalidade material por ofensa ao «direito de propriedade privada».
3. Mais esclarece que a inconstitucionalidade das supra citadas normas foi suscitada pelo recorrente logo na conclusão 4ª/a) das alegações de recurso apresentadas junto do Supremo Tribunal Administrativo e na conclusão 8ª das alegações de recurso interposto para o Pleno desse Tribunal."

Notificado para produzir alegações, A. nelas concluiu do seguinte modo (fls. 194 e seguintes):
"1ª- O relacionamento entre leis manifesta-se a diferentes níveis, sendo que «a mais frisante diferença de funções entre actos legislativos ocorre em duas hipóteses distintas: entre leis de autorização legislativa e decretos-leis publicados no uso de autorização e entre leis de princípios ou bases gerais dos regimes jurídicos e decretos-leis em seu desenvolvimento» [...];
2ª- O Decreto-Lei nº 93/90, de 19 de Março padece de inconstitucionalidade orgânica ao restringir um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, e ao consubstanciar uma regulamentação de meios e formas de intervenção nos solos (v. artigo 168º/1/al. b) e 1) da Constituição, na redacção em vigor em 1990), sem que para tanto dispusesse da necessária lei de autorização legislativa que legitimasse o Governo a intervir no âmbito da reserva relativa de competências legislativas da Assembleia da República – v. art. 165º, nº 1, al. b) e 1) da CRP [...];
3ª- Não legislando ao abrigo de uma qualquer lei de autorização legislativa ou em referência à Lei de Bases do Ambiente – Lei nº 11/87 – o Decreto-Lei nº 93/90 padece de inconstitucionalidade formal, já que decretou a disciplina jurídica da Reserva Ecológica Nacional ao abrigo da al. a) do art. 201º da CRP (actual art. 198º), isto é, mediante um decreto-lei independente [...].
4ª- Registe-se, aliás, que este entendimento não é de modo algum posto em causa pela argumentação que se utilizou no Acórdão recorrido, segundo a qual a inconstitucionalidade não existiria pelo facto do DL nº 93/90 ter sido exarado pelo Governo em desenvolvimento das bases da lei do Ambiente, pois,
a) legislar em desenvolvimento de Leis de Bases não pode significar uma dispensa do cumprimento das regras de repartição de competência da Assembleia da República constantes da Constituição, pois, é a própria Constituição que determina que nos casos em que exista essa reserva de competência é necessária lei de autorização legislativa que, em conformidade com o constante do artigo 168º/2 e 3 da Constituição, na redacção em vigor à data do DL nº 93/90, defina «o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada», sendo certo que «as autorizações caducam com a demissão do Governo a que tiverem sido concedidas, com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República» (v. nº 4 do art. 168º da Constituição);
b) contrariamente ao defendido no Acórdão do STA sub judice tem de se referir que o próprio legislador do DL nº 93/90 não quis legislar em desenvolvimento da Lei de Bases do Ambiente, pois, expressamente editou o DL 93/90 ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição, na redacção em vigor em 1990 – decretos-leis em matérias não reservadas à Ass. da República – e não ao abrigo da alínea c) desse mesmo preceito – decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes contidos em leis que a eles se circunscrevam.
c) Desse modo, não pode o intérprete entender que tal Decreto-Lei nº 93/90 foi editado pelo Governo em execução de uma Lei de Bases, quando é o próprio Governo que entendeu fazer tal Decreto-Lei por considerar que não se tratava de matéria da competência da Assembleia da República.
d) Entender de modo diferente seria admitir que por via de uma Lei de Bases se ultrapassasse a necessidade constitucional de ter uma lei de autorização legislativa que claramente definisse «o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização» (v. art. 168º/2 cit.); seria admitir que por via de uma Lei de Bases a pressuposta autorização legislativa que o STA pretende ver na Lei de Bases, não caducaria com «a demissão do Governo a que tiverem sido concedidas, com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República» (v. art. 168º/4); seria admitir, em suma, uma violação das regras de competência da Ass. da República constantes do artigo 168º/1b) e l) e nºs 2, 3 e 4 da Constituição, na sua redacção à data da entrada em vigor do DL nº 93/90.
4ª- O Decreto-Lei nº 93/90, viola o disposto nos artigos 62º, 65º, nº 4 e 266º, nº 1 da CRP, ao delimitar as áreas de REN com a aplicação de regras que, ao invés de denunciarem respeito pelos direitos dos particulares e pela justa ponderação entre o interesse público e o interesse privado, antes revelam uma grande margem de arbitrariedade, sendo certo que contemplando o regime da REN uma forma de intervenção dos poderes públicos no regime dos solos por motivos de interesse público só o poderia fazer mediante a previsão da correspondente indemnização, como o exigia o disposto no artigo 83º e 168º/1/l) da Constituição na redacção em vigor em 1990, indemnização essa que o DL nº 93/90 não contempla, pelo que também por este motivo enferma de inconstitucionalidade;
5ª- Restringindo o direito de propriedade privada com recurso a este tipo de regras, o Decreto-Lei nº 93/90 padece de inconstitucionalidade material, na medida em que viola os princípios constitucionais tão importantes como o princípio da igualdade, da justiça e da proporcionalidade e o princípio da prossecução do interesse público e da boa administração [...]."

A entidade recorrida (o Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território) foi notificada das alegações produzidas pelo recorrente, mas não respondeu (fls. 232).

II

A. Delimitação do objecto do recurso
6. No recurso em apreço, vem suscitada a questão da inconstitucionalidade orgânica, formal e material das normas constantes do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março.
Este diploma, à data da interposição do recurso contencioso de anulação que deu origem aos presentes autos, já havia sido alterado pelo Decreto-Lei n.º 316/90, de 13 de Outubro, que deu nova redacção aos seus artigos 3º, 9º e 17º, bem como pelo Decreto-Lei n.º 213/92, de 12 de Outubro, que modificou o disposto nos seus artigos 3º, 4º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 13º, 14º, 17º e 21º. Posteriormente à data da interposição de tal recurso, foi ainda aprovado o Decreto-Lei n.º 79/95, de 20 de Abril, que introduziu alterações no seu artigo 3º.
O recorrente não especifica, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional e nas respectivas alegações, qual a redacção do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, que haverá a considerar.
Mas, no que toca à alegada inconstitucionalidade orgânica e formal, está obviamente apenas em causa, no presente recurso, o próprio Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, já que tais vícios não são directamente assacados, pelo recorrente, aos subsequentes diplomas que o alteraram, e o Tribunal Constitucional não pode conhecer do que lhe não é pedido.
Já no que diz respeito à alegada inconstitucionalidade material das normas do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, cumpre saber qual a redacção de tal diploma que foi considerada na decisão recorrida, dado que o presente recurso de constitucionalidade só pode ter como objecto normas que tenham sido efectivamente aplicadas.
Compulsando o texto da decisão recorrida, verifica-se que nela se tomou em consideração o Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, na redacção do Decreto-Lei n.º 316/90, de 13 de Outubro. É o que resulta da leitura da seguinte passagem de fls. 171:
"[...]
Está em causa uma operação de loteamento [...], a qual está sujeita a parecer obrigatório e vinculativo da CCRLVT [...] e ainda a autorização da mesma entidade pública por se tratar de terreno a integrar na delimitação da Reserva Ecológica Nacional (REN), aprovada pelo DL n.º 93/90, de 19 de Março [por lapso, escreveu-se 10 de Março] e alterado pelo DL n.º 316/90, de 13 de Outubro (ibidem, art.ºs 3º, 4º e 17º), ao tempo em vigor.
[...]".

É, pois, esta a redacção do diploma a ter em conta, na apreciação da questão de inconstitucionalidade material suscitada pelo recorrente.

7. A apreciação das várias questões colocadas pelo recorrente exige que se comece por apreender os traços mais relevantes, quer da Lei de Bases do Ambiente em vigor à data da publicação do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, quer deste mesmo diploma.
A Lei n.º 11/87, de 7 de Abril (Lei de Bases do Ambiente), foi aprovada pela Assembleia da República nos termos dos artigos 164º, alínea d), 168º, n.º 1, alínea g), e 169º, n.º 2, todos da Constituição (texto emergente da 1ª revisão constitucional).
O artigo 164º, alínea d), da Constituição (texto emergente da 1ª revisão constitucional) estabelecia a competência da Assembleia da República para fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao Governo; o artigo 168º, n.º 1, alínea g) atribuía exclusiva competência à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, para legislar sobre as bases do sistema de protecção da natureza, do equilíbrio ecológico e do património cultural; o artigo 169º, n.º 2, por fim, estabelecia que certos actos revestiam a forma de lei.
De acordo com o artigo 27º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 11/87, de 7 de Abril, a reserva ecológica nacional constitui um dos instrumentos da política de ambiente e do ordenamento do território. Essa reserva não é, porém, definida nem desenvolvida na Lei.
Dispõe, por seu turno, o artigo 37º, n.º 1, do mesmo diploma, que "[c]ompete ao Governo, de acordo com a presente lei [...], a adopção das medidas adequadas à aplicação dos instrumentos previstos na presente lei.". E o n.º 2 deste preceito legal acrescenta que "[o] Governo e a administração regional e local articularão entre si a implementação das medidas necessárias à prossecução dos fins previstos na presente lei, no âmbito das respectivas competências".
Refira-se ainda que a Lei de Bases do Ambiente contém algumas proibições e prevê alguns condicionamentos destinados à salvaguarda do ambiente. Assim: as proibições de pôr em funcionamento certos empreendimentos que poluam o ar (artigo 8º, n.º 3), de eliminar certa vegetação (artigo 9º, n.º 5), ou de explorar certos empreendimentos que poluam as águas (artigo 10º, n.º 5); e o condicionamento da utilização e ocupação do solo para fins urbanos e industriais e da implantação de equipamentos e infra-estruturas pela sua natureza, topografia e fertilidade (artigo 13º, n.º 5).

8. O Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março – aprovado, portanto, já depois da publicação da referida Lei de Bases do Ambiente –, reviu o regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional (REN).

8.1. O regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional havia sido primeiramente estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 321/83, de 5 de Julho, sendo que as normas dos seus artigos 2º, n.º 1, alínea c), e 3º, n.º 1, foram várias vezes julgadas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional, por violação do disposto no artigo 168º, n.º 1, alínea g), da Constituição, na redacção de 1982.
A mencionada norma do artigo 2º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 321/83, de 5 de Julho, integrava as arribas, incluindo uma faixa até 200 metros para o interior do território a partir do respectivo rebordo, na Reserva Ecológica Nacional. Por seu lado, a norma do n.º 1 do artigo 3º do mesmo diploma determinava que "[n]os solos da Reserva Ecológica Nacional são proibidas todas as acções que diminuam ou destruam as suas funções e potencialidades, nomeadamente vias de comunicação e acessos, construção e edifícios, aterros e escavações, destruição do coberto e vida animal".
Considerou o Tribunal Constitucional, nomeadamente no acórdão n.º 152/92, de 8 de Abril (Diário da República, II Série, n.º 172, de 28-7-1992), que:
"[...] as normas em causa integram as bases do sistema jurídico de protecção da natureza e equilíbrio ecológico.
[...]
Ora, a competência para legislar sobre as bases do sistema de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico só podia ser exercida pelo Governo mediante autorização legislativa da Assembleia da República [...]. Tal autorização legislativa não existiu no caso, e assim o Governo só tinha competência legislativa própria para fazer decretos-leis de desenvolvimento das bases gerais previamente estabelecidas pela Assembleia da República – artigo 201º, n.º 1, alínea c), da Constituição, na mesma versão.
Na realidade, não só tal autorização não ocorreu como nem sequer existia na altura qualquer diploma específico sobre as bases da protecção da natureza e equilíbrio ecológico; a primeira codificação de tal matéria só viria a ser feita mais tarde pela Lei n.º 11/87, de 7 de Abril, que definiu «as bases da política de ambiente», nela inserindo, como instrumentos privilegiados, «a reserva agrícola nacional e a reserva ecológica nacional» – artigo 1º e 27º, n.º 1, alínea d), desta lei.
[...]
[...] o sistema jurídico anterior ao questionado Decreto-Lei n.º 321/83 já comportava normas sobre o ordenamento do território nas áreas a que se refere o artigo 2º, n.º 1, alínea c), do diploma.
[...]
Todavia, nenhuma das referidas restrições [que eram as constantes do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro] aponta para a proibição da realização de obras ou construções, designadamente de vias de acesso, edificações, aterros ou escavações, ou destruição do coberto vegetal e vida animal, conforme passou a estabelecer-se nos artigos 2º, n.º 1, alínea c) e 3º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 321/83. Portanto, estas normas vieram, afinal, alterar totalmente o princípio básico decorrente das normas referidas do Decreto-Lei n.º 468/71, proibindo o que até então estava meramente sujeito a licença administrativa.
Assim, e porque, como vimos, o Governo carecia de competência para as decretar sem a necessária autorização legislativa, as normas referidas do Decreto-Lei n.º 321/83 violam o disposto no artigo 168º, n.º 1, alínea g), da Constituição (versão de 1982)."

Através do acórdão n.º 368/92, de 25 de Novembro (Diário da República, I Série-A, n.º 4, de 6-1-1993), o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação da alínea g) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição, das referidas normas do Decreto-Lei n.º 321/83, de 5 de Julho. Nesse acórdão lê-se, entre o mais, o seguinte:
"[...] o tribunal, nos acórdãos fundamentadores do pedido em apreço, tendo em conta:
Por um lado, a circunstância de a regulação ínsita nas normas sub specie ter introduzido no ordenamento jurídico preexistente um princípio básico que ali se não consagrava (qual seja o de proibir a realização de obras, construções, aterros, escavações, destruição do coberto vegetal ou da vida animal nas arribas, incluindo uma faixa até 200 m para o interior do território contados a partir do respectivo rebordo), desta sorte efectuando uma fundamental e verdadeira inovação;
Por outro, que a matéria objecto das ditas normas faz parte de um sistema de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico; e
Ainda por um outro, que o diploma em que tais normas se encontram não foi emitido a coberto de autorização parlamentar;
concluiu pela inconstitucionalidade orgânica dos preceitos em análise.
[...] Não se vislumbra que seja necessário aditar qualquer outra fundamentação à argumentação carreada nos mencionados arestos, argumentação essa que agora se reitera [...]."

Portanto, e em suma, o carácter inovatório das normas em análise, aliado à circunstância de versarem sobre matéria inserida num sistema de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico, bem como à de figurarem num diploma que não havia sido emitido a coberto de autorização parlamentar, conduziram à declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dessas normas.
As normas das alíneas d), b) e e) do n.º 1 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 321/83, de 5 de Julho, foram também julgadas inconstitucionais por acórdãos subsequentes do Tribunal Constitucional (cfr. acórdãos n.º s 515/93, de 26 de Outubro, 203/95, de 20 de Abril, 218/99, de 21 de Abril, e 204/2000, de 4 de Abril), basicamente pelos fundamentos anteriores.

8.2. Retornando ao diploma em apreço no presente recurso – o Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março –, assinale-se, em primeiro lugar, que no respectivo preâmbulo se lê o seguinte:
"[...]
Com o presente diploma, e no seguimento do disposto no artigo 27º da Lei de Bases do Ambiente – Lei n.º 11/87, de 7 de Abril –, pretende-se salvaguardar, de uma só vez, os valores ecológicos e o homem, não só na sua integridade física, como no fecundo enquadramento da sua actividade económica, social e cultural, conforme é realçado na Carta Europeia do Ordenamento do Território.
Incumbindo ao Estado, de acordo com o previsto na própria Constituição, o ordenamento do espaço territorial de forma a construir paisagens biologicamente equilibradas, constituindo para o efeito organismos próprios, a criação, no âmbito do Ministério do Planeamento e da Administração do Território, da Comissão da Reserva Ecológica Nacional resulta claramente do cumprimento necessário de um imperativo constitucional.
Assim:
Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 201º da Constituição, o Governo decreta o seguinte:
[...]".
Portanto – e é este o primeiro aspecto a reter – o Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, foi emitido ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 201º da Constituição – aliás, também o foram os Decretos-Leis n.ºs 316/90, de 13 de Outubro, 213/92, de 12 de Outubro, e 79/95, de 20 de Abril, que o alteraram –, alínea essa que, no texto emergente da revisão constitucional de 1989, determinava que competia ao Governo, no exercício de funções legislativas, fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República. Não foi emitido ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 201º da Constituição que, também no texto dessa revisão, atribuía competência ao Governo, no exercício de funções legislativas, para fazer decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevessem.
De qualquer modo, o preâmbulo daquele Decreto-Lei refere expressamente o artigo 27º da Lei de Bases do Ambiente, a que o normativo aprovado pretendia dar seguimento.
Sublinhe-se ainda que, à data da publicação do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, o artigo 168º, n.º 1, da Constituição determinava, respectivamente nas suas alíneas b) e g), que a matéria dos direitos, liberdades e garantias e a das bases do sistema de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico se inseriam na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
Ora, a regulação do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março – na redacção do Decreto-Lei n.º 316/90, de 13 de Outubro –, pode, em traços gerais e para o que aqui releva, ser assim descrita:
a. Definição da Reserva Ecológica Nacional como estrutura biofísica que pressupõe o condicionamento à utilização de certas áreas (artigo 1º);
b. Caracterização das áreas abrangidas pela Reserva Ecológica Nacional (artigo 2º e anexos I e III) e atribuição, a certas entidades administrativas, de competência para proceder à delimitação dessa Reserva (artigo 3º);
c. Proibição do desenvolvimento de certas actividades, nomeadamente operações de loteamento e obras de urbanização, nas áreas incluídas na Reserva Ecológica Nacional, e atribuição às comissões de coordenação regional de competência para confirmar a possibilidade, excepcionalmente prevista no próprio diploma legal, de realizar certas actividades nas áreas incluídas na Reserva, bem como de competência para condicionar o exercício de tais actividades (artigo 4º);
d. Condicionamento do licenciamento de certas actividades em terrenos do domínio público hídrico (artigo 5º);
e. Inaplicabilidade do disposto no artigo 4º a certas áreas e operações (artigo 6º);
f. Regime dos recursos dos pareceres desfavoráveis emitidos ao abrigo do artigo 4º (artigo 7º);
g. Competência e constituição da Comissão da Reserva Ecológica Nacional (artigos 8º e 9º);
h. Obrigatoriedade de demarcação, em todos os instrumentos de planeamento que definam ou determinem a ocupação física do solo, das áreas integradas na Reserva Ecológica Nacional e das áreas sujeitas ao regime transitório (artigo 10º);
i. Competência para a fiscalização do cumprimento do diploma em causa (artigo 11º);
j. Tipificação de certas condutas como contra-ordenações, competência para a instrução dos processos contra-ordenacionais e aplicação de coimas, e destino do produto das coimas (artigos 12º e 13º);
k. Competência para embargar, demolir obras e fazer cessar certas condutas (artigo 14º);
l. Consideração como nulos dos actos administrativos que infrinjam o disposto nos artigos 4º e 17º, e responsabilidade civil de certas entidades administrativas por prejuízos que advenham, para certos particulares, dessa nulidade (artigos 15º e 16º);
m. Sujeição de certas áreas (as mencionadas nos anexos II e III), que ainda não tenham sido objecto da delimitação referida no artigo 3º, a um regime transitório, materializado na necessidade de aprovação, pela comissão de coordenação regional, das obras e empreendimentos mencionados no n.º 1 do artigo 4º, com possibilidade de recurso, para a Comissão da Reserva Ecológica Nacional, da decisão desfavorável (artigo 17º, n.º s 1 a 5). Possibilidade de avocação do processo por certos ministros, no caso de indeferimento do pedido de aprovação por esta Comissão (n.º 6);
n. Previsão da vigência do regime transitório até à aprovação da portaria de delimitação da Reserva Ecológica Nacional prevista no n.º 1 do artigo 3º (artigo 18º);
o. Exercício transitório das competências da Comissão da Reserva Ecológica Nacional pela Direcção-Geral do Ordenamento do Território (artigo 19º);
p. Revogação dos Decretos-Leis n.º s 321/83, de 5 de Julho, e 411/83, de 23 de Novembro (artigo 20º);
q. Condicionamento da aplicação do normativo em causa na Madeira e nos Açores (artigo 21º).

9. Depois destas referências ao conteúdo do diploma em apreço no presente recurso, bem como ao dos diplomas conexos que o antecederam e seguiram, cumpre apreciar a questão colocada pelo recorrente.
Mas não sem antes fazer uma precisão: é que, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, não é possível, no presente recurso, apreciar a conformidade constitucional de todas as normas constantes do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março.
E isto porque, como facilmente se depreende da leitura do próprio diploma em análise e, especialmente, do texto do acórdão recorrido, não foram aplicadas, na decisão recorrida, todas as normas do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março.
Compulsando o texto do acórdão recorrido, verifica-se que nele apenas se faz referência aos artigos 3º, 4º, 17º (este último em conjugação com a alínea d) do anexo II) e 15º, todos do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março.
E nem todas estas normas foram aplicadas na decisão recorrida, no sentido de constituírem o seu fundamento. Não foram, desde logo, aplicadas as normas do artigo 3º, dado que este preceito regula a delimitação da Reserva Ecológica Nacional e, à data da instauração do processo que deu origem aos presentes autos, tal delimitação ainda não tinha ocorrido, estando o terreno que o recorrente se propunha lotear sujeito a um regime transitório. Como se lê no texto do acórdão recorrido (cfr. fls. 171) tratava-se apenas de "terreno a integrar na delimitação da Reserva Ecológica Nacional (REN)". Também as normas dos n.ºs 2 a 7 do artigo 4º não foram aplicadas, dado que pressupõem tal delimitação da Reserva Ecológica Nacional. Finalmente, não se vê como possa ter sido aplicada a norma do artigo 15º, que considera nulos e de nenhum efeito os actos administrativos que violem os artigos 4º e 17º, dado que a decisão recorrida não versou sobre tal hipotética violação (nem ao Tribunal Constitucional compete, como é óbvio, sobre ela se debruçar).
Em suma, a decisão recorrida apenas aplicou as normas do artigo 17º, n.º s 1 (em conjugação com o n.º 1 do artigo 4º e com a alínea d) do anexo II) a 6 do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, normas essas que, em certas áreas ainda não delimitadas nos termos do artigo 3º (isto é, ainda não definitivamente incluídas ou excluídas da Reserva Ecológica Nacional), sujeitam a aprovação certas obras e empreendimentos e regulam o procedimento tendente a tal aprovação.
As restantes normas não foram aplicadas. Quer por serem consumidas pelas normas apontadas (caso da norma do artigo 1º, ou da norma do artigo 8º, alínea d)), quer por pressuporem uma delimitação da REN que ainda não havia ocorrido ao tempo da instauração do presente processo (caso das normas dos artigos 2º a 4º, 6º, 7º, 8º, alíneas a, b) e c)), quer por manifestamente nenhuma repercussão terem no caso dos autos (caso da norma do artigo 5º, que regula o domínio público hídrico, ou das normas do artigo 8º, alíneas e) e f), que regulam certas competências genéricas da Comissão da REN, ou ainda da norma do artigo 9º, que rege sobre a sua constituição). Afigura-se, finalmente, óbvio que os preceitos relativos a demarcação obrigatória em instrumentos de planeamento, fiscalização do cumprimento do diploma, contra-ordenações e correspondentes processos, embargos e demolições, responsabilidade civil da Administração, vigência do regime transitório, direito transitório e legislação revogada, nenhuma relevância tiveram na resolução do caso dos autos.
Assim delimitado o objecto do presente recurso – a apreciação da conformidade constitucional das normas do artigo 17º, n.º s 1 (em conjugação com o n.º 1 do artigo 4º e com a alínea d) do anexo II) a 6 do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março –, cumpre dele conhecer.

B. Apreciação das questões de constitucionalidade suscitadas
10. Cabe analisar, em primeiro lugar, se as normas do artigo 17º, n.º s 1 (em conjugação com o n.º 1 do artigo 4º e com a alínea d) do anexo II) a 6 do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, padecem de inconstitucionalidade orgânica, por, segundo o recorrente (cfr. conclusões 1ª, 2ª e 4ª, a) e d) das alegações), dizerem respeito a matérias da competência relativa da Assembleia da República: direitos, liberdades e garantias e meios e formas de intervenção nos solos por motivos de interesse público (artigo 168º, n.º 1, alíneas b) e l), da Constituição, na versão emergente da 2ª revisão, que é a de 1989).
As normas em apreciação estabelecem, como se viu, condicionamentos às operações de loteamento, obras de urbanização, construção de edifícios, obras hidráulicas, vias de comunicação, aterros, escavações e destruição do coberto vegetal, na medida em que sujeitam tais actividades à aprovação de certas entidades administrativas. Por outras palavras, tais actividades não são proibidas, contrariamente ao que sucederia se se desenvolvessem numa área incluída na Reserva Ecológica Nacional (cfr. artigo 4º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março), mas são simplesmente condicionadas, já que dependem de aprovação.
Será que tais condicionamentos consubstanciam uma restrição do conteúdo do direito de propriedade de certos imóveis, como pretende o recorrente?
Uma resposta afirmativa pressuporia que o direito de propriedade de um imóvel abrange naturalmente a faculdade de lotear ou construir, para só referir algumas das operações condicionadas pelas normas em apreço. Pressuporia, em suma, que o titular de um direito de propriedade sobre um imóvel tem, pelo facto de ser titular desse direito, tal faculdade, consubstanciando a abolição de tal faculdade uma restrição do direito.
A este propósito, cumpre recordar o que se disse no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 329/99, de 2 de Junho (Diário da República, II Série, n.º 167, de 20 de Julho de 1999, pág. 10576), em que estava em causa a apreciação da constitucionalidade das normas constantes do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro (diploma que estabelece o regime de caducidade dos pedidos e dos actos de licenciamento de obras, loteamento e empreendimentos turísticos emitidos anteriormente à data da entrada em vigor de plano regional de ordenamento do território):
"[...]
4. As questões de inconstitucionalidade orgânica:
[...]
4.2. As normas sub iudicio e o direito de propriedade:
A recorrente sustenta também que, tendo o Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, sido editado sem autorização legislativa, as normas sub iudicio são organicamente inconstitucionais, uma vez que versam sobre o direito de propriedade – recte, sobre uma faculdade nele incluída (o ius aedificandi) –, que é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, inscrevendo-se, por isso, na reserva parlamentar constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição, na versão de 1989 [ cf., hoje, o artigo 165º, n.º 1, alínea b)] .
A recorrente não tem, porém, razão.
Não a tem, quando se entenda, com Fernando Alves Correia (Estudos cit., páginas 51 e 52), que o ius aedificandi (mais propriamente ainda, o direito de urbanizar, lotear e edificar) não se inclui no direito de propriedade privada, «sendo antes o resultado de uma atribuição jurídico-pública decorrente do ordenamento jurídico urbanístico, designadamente dos planos» – ou seja, «um poder que acresce à esfera jurídica do proprietário, nos termos e nas condições definidas pelas normas jurídico-urbanísticas» (cf., também do mesmo autor, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1990, páginas 372 a 383). E isso, apesar de o direito de propriedade ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias [ cf., neste sentido, acórdãos nºs 404/87 e 257/92 (publicados no Diário da República, II série, de 21 de Dezembro de 1987 e 18 de Junho de 1993);o acórdão n.º e 431/94 (publicado no Diário da República, I série-A, de 21 de Junho de 1994); e ainda os acórdãos nºs 1/84 e 14/84 (publicados no Diário da República, II série, de 26 de Abril de 1984, o primeiro, e de 10 de Maio de 1984, o segundo)] e gozar, consequentemente – ex vi do disposto no artigo 17º da Constituição –, do respectivo regime naquilo que nele reveste essa natureza análoga.
De facto, não sendo o ius aedificandi inerente ao direito de propriedade do solo, o Governo, ao editar o Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro - e, assim, ao sujeitar a verificação de conformidade as licenças de loteamento devidamente tituladas, designadamente por alvará, emitidas anteriormente à data da entrada em vigor do respectivo plano regional de ordenamento do território, e ao determinar a «caducidade» das que não forem confirmadas –, não editou normas sobre o direito de propriedade. Mas, sendo assim, é obvio que o Governo, com a edição do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, não invadiu a reserva parlamentar atinente aos direitos, liberdades e garantias.
Mas, mesmo quem entenda que o ius aedificandi constitui parte integrante do direito de propriedade privada, por ser uma das faculdades em que tal direito se analisa, acontecendo apenas que o seu exercício está dependente de uma autorização da Administração [ cf., neste sentido, entre outros, Diogo Freitas do Amaral («Apreciação da Dissertação de Doutoramento do Licenciado Fernando Alves Correia», in Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1991, páginas 99 a 101)] , não tem forçosamente que concluir, como fazem alguns autores [ cf. Diogo Freitas do Amaral e Paulo Otero (Direito do Ordenamento do Território e Constituição, Coimbra, 1998, páginas 29 e 30); e J.M. Sérvulo Correia e J. Bacelar Gouveia (Direito do Ordenamento cit., página 151)] , que toda a normação que contenha alterações ao ius aedificandi (e, concretamente, a que se contém no mencionado Decreto-Lei n.º 351/93) haja de ser produzida (ou autorizada) pela Assembleia da República.
É que, apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Como, embora a outro propósito, se sublinhou no acórdão n.º 373/91 (publicado no Diário da República, I série-A, de 7 de Novembro de 1991), cabem na reserva legislativa parlamentar «as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos ‘direitos análogos’, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias».
Ora, no que concerne ao direito de propriedade, dessa dimensão essencial que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública – e, ainda assim, tão-só mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62º, nºs 1 e 2, da Constituição). Já, porém, se não incluem nessa dimensão essencial os direitos de urbanizar, lotear e edificar, pois, ainda quando estes direitos assumam a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, não se trata de faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição: é que essas faculdades, salvo, porventura, quando esteja em causa a salvaguarda do direito a habitação própria, já não são essenciais à realização do Homem como pessoa. E, assim, como só pode construir-se ali onde os planos urbanísticos o consentirem; e o território nacional tende a estar, todo ele, por imposição constitucional, integralmente planificado [cf. artigos 9º, alínea e), 65º, nº 4, e 66º, nº 2, alínea b)]; o direito de edificar, mesmo entendendo-se que é uma faculdade inerente ao direito de propriedade, para além de ter que ser exercido nos termos desses planos, acaba, verdadeiramente, por só existir nos solos que estes qualifiquem como solos urbanos. Atenta a função social da propriedade privada e os relevantes interesses públicos que confluem na decisão de quais sejam os solos urbanizáveis, o direito de edificar vem, assim, a ser inteiramente modelado pelos planos urbanísticos.
Fernando Alves Correia fala do direito de propriedade urbana como «um direito planificado»; e afirma que os planos urbanísticos são instrumentos que definem «o conteúdo e limites do direito de propriedade do solo», sem que, ao menos em regra, tenham natureza expropriativa (Estudos cit., páginas 47 e 50).
A conclusão a que acaba de chegar-se não é posta em crise pelo facto de a licença em causa nos autos já ter sido concedida no momento da edição das normas sub iudicio – e de, assim, se estar perante uma ablação de um direito (no caso, do direito de lotear) que, uma vez validamente concedido, passou a integrar a esfera patrimonial (é dizer, a propriedade) do titular da licença. De facto, a ablação desse direito, sendo, embora, susceptível de originar uma obrigação de indemnizar, não tem a virtualidade de transmudar a essência do direito de propriedade, por forma a fazer incluir nela faculdades que a garantia constitucional não cobre (recte, as faculdades de lotear, urbanizar e construir).
[...].

Portanto, e aplicando a doutrina do acórdão acabado de mencionar: quem entenda que o ius aedificandi (mais propriamente ainda, o direito de urbanizar, lotear e edificar) não se inclui no direito de propriedade privada, há-de concluir que o Governo, ao editar as normas em apreciação no presente recurso, não invadiu a reserva parlamentar estabelecida na alínea b) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição (versão de 1989), dado que não editou normas sobre o direito de propriedade privada; mas ainda que se entenda que os direitos de urbanizar, lotear e edificar assumem a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, há que reconhecer que não estão em causa faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição, pelo que o Governo, ao editar as normas em apreciação no presente recurso, não invadiu a referida reserva parlamentar. Com efeito, tal reserva parlamentar abrange apenas "as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos ‘direitos análogos’, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias".
Refira-se, por último, que em acórdãos ainda mais recentes o Tribunal Constitucional defendeu a orientação a que se aderiu (veja-se a fundamentação constante do acórdão n.º 517/99, de 22 de Setembro, publicado no Diário da República, II Série, n.º 263, de 11 de Novembro de 1999, pág. 17054, bem como do acórdão n.º 602/99, de 9 de Novembro, inédito).
Relativamente à alegada inconstitucionalidade orgânica decorrente de as normas em referência consubstanciarem uma regulamentação de meios e formas de intervenção nos solos por motivo de interesse público (cfr. artigo 168º, n.º 1, alínea l), da Constituição, na versão de 1989), é evidente que o recorrente não tem razão. Na verdade, se se considerasse que a regulação da reserva ecológica nacional necessariamente consubstancia um meio ou forma de intervenção nos solos, perderia sentido a atribuição, à Assembleia da República, de competência reservada para legislar apenas sobre as bases do sistema de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico (cfr. alínea g) daquele mesmo artigo). Por outras palavras, todo o regime da protecção da natureza e do equilíbrio ecológico deveria, já que forçosamente implica uma "intervenção nos solos", no sentido utilizado pelo recorrente, cair no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República.
Portanto, e sob pena de a referência às "bases", constante da mencionada alínea g) do n.º 1 do artigo 168º perder qualquer conteúdo útil, é manifesto que a expressão "meios e formas de intervenção nos solos" não pode significar a regulação dos instrumentos de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico. Como assinalam Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed. revista, Coimbra Editora, 1993, pág. 674), a alínea l) do n.º 1 do artigo 168º deve ser relacionada com o artigo 83º, relativo aos requisitos de apropriação colectiva, sendo o seu âmbito idêntico.

11. Cabe agora analisar uma segunda questão.
A circunstância de as normas em análise terem sido expressamente emitidas ao abrigo de um preceito constitucional que, ao tempo, dispunha sobre a competência legislativa do Governo em matérias não reservadas à Assembleia da República, aliada àqueloutra de apenas no preâmbulo do diploma do Governo se fazer referência à Lei de Bases do Ambiente, redundará na respectiva inconstitucionalidade formal (cfr. conclusões 3ª e 4ª, b) e c) das alegações do recorrente)?
Como é óbvio, não interessa agora analisar esta questão sob o ponto de vista da falta de referência, no diploma do Governo, a uma qualquer lei de autorização legislativa (cfr., ainda, conclusão 3ª das alegações do recorrente), já que, como se explicou, as normas em apreço no presente recurso não se relacionam com as matérias a que aludem as alíneas b) e l) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição (versão de 1989). Apenas cumpre saber se o Governo, ao emitir tal diploma, devia ter feito uma referência à Lei de Bases do Ambiente diversa daquela que fez, e se essa irregularidade origina inconstitucionalidade formal das normas constantes de tal diploma.
A Constituição (versão de 1989, em vigor à data da aprovação do Decreto-Lei do Governo em causa) nada determinava sobre a necessidade de o Governo, ao legislar sobre matérias da reserva relativa da Assembleia da República ou ao desenvolver bases gerais de regimes jurídicos, expressamente invocar a alínea do n.º 1 do artigo 201º da Constituição ao abrigo da qual exercia tal competência legislativa. Apenas no n.º 3 do artigo 201º se exigia que, aquando do uso das competências legislativas aí mencionadas, o Governo indicasse a lei de autorização legislativa ou a lei de bases ao abrigo da qual aprovava um determinado diploma.
Ora, se a Constituição não exigia que o Governo indicasse a alínea do preceito constitucional ao abrigo da qual exercia determinada competência, não pode vislumbrar-se qualquer vício susceptível de gerar inconstitucionalidade formal na circunstância de o Governo errar na indicação da alínea ao abrigo da qual legislava. Apenas podia configurar tal vício a omissão de indicação do diploma da Assembleia da República à sombra do qual o Governo exercia funções legislativas: a partir do momento em que, por exemplo, o Governo desenvolvia as bases gerais de um regime jurídico, era imperioso mencioná-lo no diploma.
Em conclusão: não gera inconstitucionalidade formal a alegada "errada indicação" da alínea ao abrigo da qual o Governo exerceu a sua competência legislativa, aquando da aprovação do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, redundando tal vício em mera irregularidade.
Apenas cabe perguntar se a exigência contida no n.º 3 do artigo 201º pode considerar-se satisfeita, quando o Governo apenas no preâmbulo do diploma por si aprovado indica a lei de bases (no caso, a Lei de Bases do Ambiente).
E a resposta a esta questão deve ser afirmativa. O n.º 3 do artigo 201º da Constituição não exigia que a invocação da lei de bases fosse feita num local preciso do diploma aprovado pelo Governo. Bastava que essa invocação fosse expressa, o que certamente ocorreu. Diz-se, na verdade, no preâmbulo do diploma: "[c]om o presente diploma, e no seguimento do disposto no artigo 27º da Lei de Bases do Ambiente – Lei n.º 11/87, de 7 de Abril – [...]".
Resolvida a questão da inconstitucionalidade formal que, pelas razões expostas, se não aceita, há que passar às restantes questões suscitadas pelo recorrente.
12. Padecerão as normas em apreço de inconstitucionalidade material?
Afirma o recorrente (cfr. conclusões 4ª e 5ª, de fls. 230-231) que tais normas violam o disposto nos artigos 62º, 65º, n.º 4, e 266º, n.º 1, da Constituição (versão de 1989). Na actual versão da Constituição, mantém-se, no essencial, o teor destes preceitos.
O artigo 62º tutelava e tutela o direito de propriedade privada; o artigo 65º, n.º 4, dispunha que "[o] Estado e as autarquias locais exercerão efectivo controlo do parque imobiliário, procederão às expropriações dos solos urbanos que se revelem necessárias e definirão o respectivo direito de utilização" e, actualmente, dispõe que "[o] Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística"; por fim, o artigo 266º, n.º 1, determinava e determina que "[a] Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos".
O recorrente apela ainda aos princípios da igualdade, justiça, proporcionalidade e prossecução do interesse público e boa administração.
Para decidir a questão da inconstitucionalidade material das normas ora em causa, é importante recordar o que se disse no já citado acórdão n.º 329/99, de 2 de Junho:
"[...]
5. As questões de inconstitucionalidade material:
5.1. As normas sub iudicio e o direito de propriedade:
5.1.1. A recorrente sustenta que as normas sub iudicio são ainda inconstitucionais, por violação do artigo 18º, n.º 3, da Constituição, na medida em que, impondo «a confirmação da compatibilidade de actos constitutivos de direitos praticados em data anterior à publicação do PROT e do próprio Decreto-Lei n.º 351/93», e encurtando «o prazo de caducidade daqueles actos», «estabelecem restrições retroactivas em matérias incluídas nos direitos fundamentais de propriedade privada, iniciativa económica privada e ius aedificandi».
Também neste ponto falece razão à recorrente.
De facto, quando se entenda que o ius aedificandi não faz, sequer, parte integrante do direito de propriedade, por não ser uma das faculdades em que ele se analisa, a proibição de construir num determinado solo, em que antes a edificação era possível, não se traduz nunca em qualquer compressão ou restrição de tal direito.
Mas, mesmo quando se entenda que o direito de construir (e, obviamente, o de lotear e urbanizar) é uma dimensão do direito de propriedade, as proibições de construção decorrentes dos planos urbanísticos (tal como as impostas pela REN, pela RAN ou pelo facto de determinada área ser qualificada como protegida) – e, naturalmente, as limitações e condicionamentos impostos ao direito de edificar por esses instrumentos de gestão dos solos – resultam da necessidade de resolver as situações de conflito entre o direito de propriedade e as exigências de ordenamento do território. E os conflitos de direitos ou bens jurídicos resolvem-se, harmonizando esses direitos ou bens jurídicos em toda a medida em que tal seja possível; ou, quando o não for, fazendo que uns prevaleçam sobre outros, que, desse modo, são, em parte, sacrificados.
Significa isto que a especial situação da propriedade – seja a decorrente da sua própria natureza ou, antes, a que se liga à sua inserção na paisagem – importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo. E, por isso, essa proibição, sendo, como é, imposta pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade, não pode ser havida como inconstitucional.
Claro é que isto não dispensa o legislador de criar instrumentos ou mecanismos de perequação das mais valias, de modo a garantir o respeito da justiça material, a qual só se observará, se os proprietários ou titulares de outros direitos reais dos terrenos abrangidos pelos planos urbanísticos forem tratados com igualdade. Por isso, aqueles instrumentos ou mecanismos hão-de corrigir os efeitos desigualitários criados pelos planos urbanísticos. De contrário, eles não se libertarão da «sombra desqualificante da desigualdade» que sobre eles pesa (cf. Fernando Alves Correia, in Problemas Actuais cit., página 19).
As normas sub iudicio não violam, assim, neste ponto, o artigo 18º, n.º 3, conjugado com o artigo 62º, n.º 1, da Constituição.
[...]
5.2. As normas sub iudicio e o dever de indemnizar:
A recorrente sustenta ainda que, como não prevêem «a atribuição de qualquer indemnização aos lesados pela prática de acto ablativo de não confirmação da compatibilidade de actos constitutivos de direitos perfeitamente válidos e eficazes à data da sua prolação, nem pela caducidade resultante dos novos prazos estabelecidos para o exercício dos direitos emergentes daqueles actos» – acto de não confirmação que pode constituir «verdadeiro acto expropriativo do direito de construir concretizado através de licenças urbanísticas válidas e eficazes» – as normas do Decreto-Lei n.º 351/93, de 7 de Outubro, «enfermam de inconstitucionalidade material por violação dos princípios da justa indemnização, igualdade e proporcionalidade» (artigos 13º, 18º, 62º e 266º da Constituição).
Vejamos, então:
Disse-se atrás que a especial situação da propriedade – seja a decorrente da sua própria natureza ou, antes, a que se liga à sua inserção na paisagem – importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo.
Por isso, a proibição de construir decorrente da natureza intrínseca da propriedade ou da sua especial situação não dá, em princípio, direito a indemnização. Mas já assim não será – sublinha Fernando Alves Correia, Estudos de Direito do Urbanismo citado, páginas 47 e notas 10 e 11, 68, 112 e 120 – quando essa proibição implicar um dano de gravidade e intensidade tais que torne injusta a sua não equiparação, à expropriação, para o efeito de dever ser paga uma indemnização.
[...]."

O trecho do acórdão acabado de transcrever transmite-nos as seguintes ideias centrais, perfeitamente pertinentes para a questão ora em análise: quando se entenda que o ius aedificandi não faz, sequer, parte integrante do direito de propriedade, a proibição de construir num determinado solo não se traduz nunca em qualquer compressão ou restrição de tal direito; mesmo quando se entenda que o direito de construir (e, obviamente, o de lotear e urbanizar) é uma dimensão do direito de propriedade, as proibições de construção impostas pela Reserva Ecológica Nacional e, naturalmente, as limitações e condicionamentos por ela impostos ao direito de edificar, resultam da necessidade de resolver as situações de conflito entre o direito de propriedade e as exigências de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico, sendo impostas pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade e, portanto, não podendo ser havidas como inconstitucionais; a proibição de construir (e, obviamente, a de lotear e urbanizar) decorrente da natureza intrínseca da propriedade ou da sua especial situação não dá, em princípio, direito a indemnização, só assim não sendo quando a proibição implicar um dano de gravidade e intensidade tais que torne injusta a sua não equiparação à expropriação, para o efeito de dever ser paga uma indemnização.
Aplicando estas ideias à questão a apreciar, temos que a sujeição a aprovação das operações de loteamento em certas áreas sujeitas ao regime transitório da Reserva Ecológica Nacional, se se entender que não traduz qualquer restrição do direito de propriedade, nem sequer coloca o problema da ofensa dos preceitos e princípios constitucionais apontados pelo recorrente; ainda que se entenda que tal restrição ocorre, ela seria perfeitamente justificada pela hipoteca social que onera a propriedade privada do solo e, como tal, conforme com a tutela constitucional da propriedade privada e com os princípios da igualdade, justiça, proporcionalidade e prossecução do interesse público e boa administração (este último também aflorado no artigo 266º, n.º 1, da Constituição), contrariamente ao sustentado pelo recorrente.
Relativamente à norma do n.º 4 do artigo 65º da Constituição (artigo que, na redacção emergente da 2ª revisão constitucional, tinha como epígrafe "direito à habitação" e que, actualmente, tem como epígrafe "habitação e urbanismo"), cuja violação o recorrente também invoca, é patente a sua falta de conexão com o assunto em debate. Na verdade, as normas em apreciação no presente recurso não põem em causa – porque pura e simplesmente não é esse o seu objecto – a competência do Estado e outros entes públicos para definir regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, ou para proceder à expropriação de determinados solos.
Finalmente, a circunstância de as normas em apreço não preverem (talvez porque pura e simplesmente ao diploma em que se inserem não competisse dispor sobre o assunto) a atribuição de indemnização pela não aprovação de pedidos de loteamento não tem qualquer relevo na apreciação da questão ora em análise. Desde logo, porque nem tal indemnização esteve em discussão nos presentes autos, nem a decisão recorrida se pronunciou sobre ela: como tal, nunca no presente recurso se poderia aferir a conformidade constitucional de tais normas no sentido de não conferirem indemnização pela não aprovação de um projecto de loteamento.

III

13.
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.

Lisboa, 5 de Dezembro de 2001
Maria Helena Brito
Luís Nunes de Almeida
Artur Maurício
José Manuel Cardoso da Costa

6 comentários:

  1. Anónimo disse...

    No Acórdão em presença, o recorrente vem requerer ao Tribunal Constitucional que se pronuncie acerca da constitucionalidade do Decreto-Lei nº93/90, que estabelece o regime da Reserva Ecológica Nacional (REN). Isto ocorre, porque foi com base neste DL que o recorrente viu o seu pedido de loteamento industrial de uma parcela de terreno ser recusado.
    O recorrente, em sua defesa, invocou o art.62º da CRP que consagra o direito à propriedade, identificando-o, correctamente, como sendo um direito fundamental. Assim sendo, defendeu também que a esse direito fundamental deveria ser aplicável o regime dos direitos, liberdades e garantias do art.17º da CRP. É a partir deste raciocínio que o recorrente vem alegar a suposta inconstitucionalidade do DL nº93/90, visto que este ultimo vinha restringir o seu direito de propriedade, ao impossibilita-lo de efectuar o loteamento.
    A entidade recorrida alertou para o facto de, não obstante, o direito de propriedade ser um direito constitucionalmente garantido, isso não implica que o mesmo não conheça limites. Ora, o que se quis aqui clarificar é que o direito de propriedade não é um direito absoluto, estando sujeito a algumas limitações, principalmente as que surgem do domínio urbanístico e do ordenamento do território.
    O caso sub judice obriga-nos, de alguma forma, a delimitar o conteúdo essencial do direito de propriedade privada, visto que só assim se conseguirá aferir o que será legitimo fazer ao abrigo do mesmo e aquilo que estará restrito. Com efeito, o que compete agora discutir é se o jus aedificandi – direito de construir, urbanizar, lotear, edificar… – é parte integrante do direito de propriedade ou não.
    O Acórdão destaca opiniões divergentes acerca desta problemática. Para quem defende que o direito de construir não está inerente no direito de propriedade, admite-se expressamente que o direito de propriedade está sujeito a restrições e como tal o argumento do recorrente não pode proceder. Se, por outro lado, se entende que o jus aedificandi é um elemento do direito de propriedade, ainda assim se concordará que o mesmo direito não é absoluto, visto que o seu exercício continuaria a estar dependente de uma autorização da Administração.
    Creio que o entendimento do recorrente não será o mais acertado, na medida em que não se pode dar um estatuto de direito absoluto ao direito de propriedade, sobrepondo-o aos demais direitos e interesses em presença. Neste caso, o que se visa proteger é a natureza e o equilíbrio ecológico, que é também um direito social, enunciado no art.66º/2 CRP. Consequentemente, o direito de propriedade do recorrente não lhe daria a legitimidade necessária para empreender operações de loteamento na área em questão. A referida área não tinha sido objecto de delimitação referida no art.3º do DL nº 93/90. Isto quer dizer que não estava ainda definitivamente incluída na Reserva Ecológica, encontrando-se submetida ao regime transitório consagrada no art.17º do DL nº 93/90.
    Importa também focar o disposto no art.62º/2 da CRP, que impõe o pagamento de uma indemnização sempre que o direito de propriedade privada seja constrangido por razoes de utilidade pública. Releva mencionar esta questão porque constitui uma especificidade do DL nº 93/90 a situação de não contemplar o pagamento de uma indemnização nos casos em que o regime da REN condicione o direito de propriedade. Ora, é necessário, novamente, que se delimite a dimensão essencial do direito de propriedade, visto que é esta que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Esta parte essencial do direito de propriedade será o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de interesse público e ainda assim haverá lugar ao pagamento de uma indemnização (art.62º/1 e 2 CRP). Exclui-se desse núcleo essencial os direitos de urbanizar, lotear e edificar, não havendo, segundo este entendimento, o direito a indemnização, salvo quando esteja em causa a salvaguarda do direito de habitação própria.
    Em conclusão, entendo que a decisão do Tribunal Constitucional, que caminhou no sentido de negar o provimento ao recurso, afastando a inconstitucionalidade do DL nº 93/90, foi prudente e bem fundamentada, mas creio que o regime da REN deveria contemplar o mecanismo de indemnização, para compensar eventuais condicionamentos do direito de propriedade privada.

    Tania Vieira, nº 14508  

  2. Anónimo disse...

    Lido o Acórdão do Tribunal Constitucional sobre a REN, cabe fazer uma análise crítica, e a questão de fundo que se coloca é a compatibilidade do direito ao ambiente com o direito de propriedade privada. Questiona-se até que ponto se afigura constitucional restringir legalmente e tendo em vista a prossecução de finalidades ambientais, as faculdades de uso do proprietário do solo, sem a previsão de qualquer indemnização.

    O direito ao ambiente e à qualidade de vida de vida está consagrado no art. 66.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), e apesar de estar incluído no catálogo dos direitos e deveres sociais, pode ser entendido como um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, pelo art. 17.º da CRP. Assim, o direito ao ambiente corresponde a uma pretensão jurídica de acção, negativa e positiva, por parte do Estado. No primeiro sentido, exige-se do Estado, de outras pessoas colectivas públicas ou privadas e dos cidadãos em geral, a abstenção de comportamentos que acabem por lesar o ambiente. A pretensão jurídica de acção positiva impõe ao Estado a promoção de um conjunto de medidas directamente orientado para desenvolver “um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado” – art. 66.º/1, CRP. É neste contexto que incumbe ao Estado as tarefas elencados no art. 66.º/2, al.s b), c) e d), CRP.

    O solo constitui uma das componentes ambientais mais delicadas que cabe ao Estado proteger. As funções desempenhadas pela componente ambiental natural do solo encontram-se incindivelmente ligadas às características essenciais que determinado terreno apresenta: aptidão transformadora, sendo um produtor de biomassa; suporte físico de todas as actividades humanas e produtor de matérias primas. Assim, se na perspectiva da função transformadora constituem factores relevantes de produtivudade agrícola, a fertilidade e a extensão do solo arável, já na perspectiva do suporte físico passa a ser imprescindível a localização espacial do solo e as infraestruturas que o acompanham, pois são estes os factores que determinarão o valor de mercado do mesmo.

    Como se vê, os solos podem ter vários usos, dependentes não só das variadas funções que estes podem desempenhar, mas também das características e qualidades que apresentam. Portanto, é fácil surgirem incompatibilidades entre os usos que o proprietário de um terreno pretende atribuir e as qualidades essenciais de que o mesmo se reveste. Então, a legislação ambiental de base começou por desenvolver uma hipótese de priorização do uso dos solos de acordo com a natureza, fertilidade e a topografia de que os mesmos são portadores. A Lei de Bases do Ambiente – Lei 11/87 de 7 de Abril - no seu art. 13.º/1 determina a defesa e a valorização do solo. Com isto, pretende-se que a utilização não agrícola de solos dotados de um elevado grau de fertilidade, deverá ser condicionada de modo a evitar a sua erosão e a degradação, bem como o despreendimento de terras, inundações e outros efeitos. A Reserva Agrícola Nacional constitui assim, o instrumento que a Lei de Bases do Ambiente priviligia para condicionar o uso não agrícola dos solos que se revestem de especiais codições de fertilidade ( art. 27.º/1, al. d) da Lei 11/87 de 7 de Abril). O mesmo sucede com a Reserva Ecológica Nacional, que é considerada pela Lei de Bases do Ambiente como um instrumento de política de ambiente e ordenamento do território.

    No acórdão faz-se a destrinça entre medidas expropriativas, merecedoras de indemnização e simples manifestações da função social inerente ao entendimento actual de propriedade, à qual não existe pretensão ressarcitória. Isto por causa das proibições ao exercício do “ius aedificandi” nos solos de RAN e da REN, no caso em análise, do último.

    O direito de propriedade privada é, apesar de estar incluído no leque dos direitos económicos, um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, tal como o direito ao ambiente, pelo que é directamente aplicável - 18.º da Lei Fundamental.

    Antes de prosseguir, acho que é relevante saber qual é o conteúdo que a Constituição quer ou pretende para o direito de propriedade privada, em especial para aquele que incide sobre a componente ambiental natural do solo.

    O direito de propriedade privada vem elencado na Constituição, nos termos do art. 62.º/1, e tal como todos os outros direitos, este não é mais, nem absoluto , nem ilimitado, como foi outrora . Assim, na tentativa de tentar delimitar se uma determinada intervenção (legal ou administrativa) constitui sacrifício indemnizável do direito de propriedade ou constitui mera vinculação social da mesma, não pode ser ignorado o protagonismo social que a propriedade moderna desempenha, sendo mesmo tentada a afirmar que, no entusiasmo de proteger o meio ambiental e de assim promover um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, a propriedade acaba por desenvolver também um protagonismo ecológico ou ambiental.

    A autorização de expropriação ou requisição por utilidade pública que o art. 62.º/2 refere, demonstra uma manifestação clara da função social que a propriedade desempenha.
    O direito de propriedade privada abrange, pelo menos, quatro faculdades diversas:
    1- direito de adquirir a propriedade
    2- direito de a transmitir
    3- direito a não ser privado dela de modo arbitrário e sem uma indemnização justa
    4- direito de usar, fruir e dispor dos bens de que se é proprietário.
    Só os três primeiros direitos se encontram expressamente no art. 62.º, o último tem sido alvo de divergência.

    Determinar se e em que medida é que esta norma inclui o “ius aedificandi” na garantia constitucional que consagra, constitui ponto de particular relevância para a resolução da questão em análise do acórdão.

    Há quem entenda, como o Ac. refere, Fernando Alves Correia, que o “ius aedificandi” não se inclui no direito de propriedade privada, considerando então que não existe um direito originário à construção, o qual só se adquiriria por via derivada, ou seja, através de uma autorização ou licença de construção que desempenha uma função constitutiva. Esta faculdade é um poder que acresce à esfera jurídica do proprietário nos termos e nas condições defeinidas pelas normas jurídico-urbanísticas.

    A outra opinião doutrinária (Diogo Freitas do Amaral, entre outros) entende que o direito de edificar é uma faculdade inerente ao direito de propriedade privada, mas apenas se pode exercitar ou desenvolver no quadro de normas jurídicas específicas de natureza urbanística, mas também de índole ambiental.

    A faculdade de construir integra o conteúdo daquele direito fundamental, no entanto, tal como acontece com outras faculdades integradoras do direito de propriedade, não se apresenta absoluto e ilimitado, verificando-se, por isso, que o proprietário de um terreno se encontra condicionado na decisão de se e como construir no mesmo. Só tem sentido discutir a ressarcibilidade dos vínculos ambientais que restringem o uso dos solos os que proíbem as construções nos terrenos abrangidos pelas àreas da RAN e da REN, se se aceitar que o art. 62.º dá guarida ao direito de edificação.

    Em meu entender, a faculdade de edificação ou de construção ainda é um poder que integra o conteúdo constitucional do direito de propriedade, apesar das inúmeras condicionantes que sofre. A função social e a função ecológica a que a propriedade privada se rendeu, pode legitimar as cedências e as amputações que a lei ou a Administração impõem ao proprietário, mas não podem negar o ressarcimento dos danos eventualmente causados aos cidadãos por ela afectados, na medida em que se trata de verdadeiras restrições destinadas a sanar a colisão daquele direito com outro ou outros direitos constitucionalmente protegidos.

    A REN proibe na área determinada para a reserva, que se efectuem operações de loteamento, obras de manutenção, construção de edifícios, obras hidráulicas, vias de comunicação, aterros, escavações e destruição de cobertura vegetal - art. 4.º deste regime jurídico. Todavia, para que as restrições ao direito de propriedade privada provocadas pela necessidade de protecção dos bens ambientais assumam um carácter constitucionalmente legítimo, torna-se indispensável que obedeçam ao regime específico das restrições dos direitos fundamentais contido no art. 18.º,da CRP.

    O art. 62.º/2 não contém uma autorização expressa para promover vinculações e restrições ao direito de propriedade, no entanto, se permite que que a lei introduza intervenções ablatórias do direito de propriedade privada ou do seu seu uso temporário, então, por maioria de razão se há-de entender que o texto constitucional autoriza limitações e compressões do seu uso e fruição, na medida em que constituem um “minus” em relação aos factos de índole ablatória.

    Face ao exposto, cabe analisar se o Decreto-Lei 93/90, de 19 de Março, não padecerá de inconstitucionalidade orgância, pois tal como o recorrente (do Ac.) alega, este diploma diz respeito a matérias da competência relativa da Assembleia da Repúplica (AR): direitos, liberdades e garantias e meios e formas de intervenção nos solos por motivos de interesse público (art. 165.º, nº1, al.s b) e l).

    Ora, sendo uma competência da reserva relativa da AR e porque toda a restrição de um direito fundamental tem de ser promovida mediante uma lei da AR ou, por um Decreto-Lei autorizado para o efeito (art. 165.º/1, b) e 18.º/2, CRP) julgo enfermar de inconstitucionalidade orgânica o diploma em questão. Portanto, o DL 93/90 e as suas modificações não foram elaborados ao abrigo de autorizações legislativas, motivo pelo qual são organicamente inconstitucionais.

    Além desta inconstitucionalidade orgânica penso que existe também uma inconstitucionalidade material, por violação dos art.s 62.º/1 e 13.º/1 (art. 18.º/3, in fine), da CRP. A garantia constitucional da propriedade privada não pode ser sacrificado sem indemnização, não apenas nas situações que configurem uma expropriação técnica, como também naquelas em que, muito embora não se alterando a titularidade do bem, determinadas faculdades daquele direito resultem excessiva ou desigualmente comprimidas por comparação ao escopo social ou ecológico onde originariamente encontram legitimidade.

    Nem todas as compressões do direito de propriedade assumem, em concreto, dignidade ressarcitória. Todavia, as leis que de modo directo ou indirecto, acabem por conformar ou restringir aquele direito fundamental, não podem, em abstracto e a priori, negar ou omitir a referência a qualquer indemnização aos proprietários eventual e particularmente afectados pelo conjunto de vinculações e restrições que impõem, sob pena de se tornarem leis ou normas materialmente inconstitucionais por atingirem o conteúdo essencial de um direito com estatuto análogo aos direitos fundamentais (art. 18.º/3, in fine, CRP). É o que sucede com os diplomas legais que instituem o regime da RAN e da REN, pois não se encontra ao longo de todo o seu corpe normativo, a mínima alusão a um direito de indemnização que, dentro de determinados supostos, pudesse ser exigido pelos proprietários especial e particularmente afectados por tais medidas.

    A doutrina e a jurisprudência costumam fazer uma distinção entre vinculações urbanísticas e vinculações ambientais. Às primeiras, a maioria da doutrina e da jurisprudência não negam o carácter ressarcitório, defendendo que na concorrência de determinadas circunstâncias, devem os proprietários afectados ser contemplados com uma justa indemnização. No que toca aos vínculos ambientais essa mesma doutrina e jurisprudência nega qualquer hipótese de ressarcimento por incidirem sobre uma categoria homogénea de bens e como tal não provocarem um sacrifício particular ou especial na esfera jurídico-patrimonial do particular visado.

    Na minha óptica, negar a ressarcibilidade aos vínculos ambientais, pelo menos dentro de determinados pressupostos, pode conduzir a um radicalismo ambiental capaz de provocar um abalo na garantia constitucional do direito de propriedade privada. Assim, os vínculos ambientais são susceptíveis de indemnização desde que imponham ao proprietário do terreno afectado um prejuízo especial ou particular.

    Serão de ressarcir, na ponderação concreta de cada caso e na tentativa de encontrar um ponto de equilíbrio entre um minimalismo ambiental e um dirigismo económico, as restrições do direito de edificar que, impostas pelo regime da RAN e da REN, acabem por afastar, anular ou expropriar uma das possibilidades concretas de utilização do terreno, por exemplo, aquela vocacionada para a construção.

    Por tudo o que foi dito cabe-me referir que, relativamente ao Ac., discordo em todos os pontos de análise. Assim sendo, consideraria o diploma inconstitucional, quer orgânica, quer materialmente, e ainda que o recorrente teria direito a uma indemnização.  

  3. Anónimo disse...

    Quanto à alegada inconstitucionalidade formal, concordo com a solução dada pelo Tribunal, pois a errada indicação da alínea ao abrigo da qual o Governo exerceu a sua competência, uma vez que se tal fosse o caso, a matéria do direito de propriedade poderia ser objecto de autorização pela AR. Já seria solução diversa se a matéria incluída no diploma do Governo fosse de Reserva absoluta e fosse indicada uma alínea da Reserva relativa.
    Relativamente à inconstitucionalidade material esta não é de aceitar, pois apesar de, na minha opinião, considerar que o ius aedificandi integra o direito de propriedade, este deve ceder perante outros valores que em determinadas circunstâncias prevaleçam, neste caso exigências de ordenamento do território e o direito fundamental ao ambiente para protecção de áreas com particular relevo. De facto, o problema da reserva de lei, mesmo para quem partilhe da minha posição de o ius aedificandi ser parte integrante do direito de propriedade (sendo também direito fundamental), ficou a partir da revisão constitucional de 1997 ultrapassado, já que ficou consagrada a distribuição de competências urbanísticas entre Estado, regiões autónomas e autarquias locais. Neste caso deve a faculdade do direito de edificar ser preterida, embora critique o facto de não se atribuir na maioria das vezes uma indemnização, devendo o adquirente ser compensado por ver alterada a sua esfera jurídica e direitos legitimamente adquiridos, questão que é desenvolvida mais abaixo. Não é incompatível, mesmo considerando o ius aedificandi como direito fundamental, que surjam restrições legítimas em prol de outros direitos fundamentais que face às circunstâncias devem sobrepor-se, tal como sucede neste acórdão com o direito fundamental ao ambiente. O direito de propriedade é um direito que não sendo absoluto, pode ser limitado quanto à sua faculdade inerente, que é o ius aedificandi. Tal limitação é prevista ao nível constitucional.
    Quanto à natureza do ius aedificandi existem duas teses, a tese privatista e a publicista, sendo esta última a maioritariamente acolhida pela doutrina. A tese privatista, com base nas regras civilísticas consideram que o ius aedificandi é uma faculdade inerente ao direito de propriedade privada, enquanto que a tese publicista desintegra o ius aedificandi do direito de propriedade privada, sendo concedido pela Administração aos particulares através de acto jurídico, através das regras de Direito Administrativo. Salvo o devido respeito, não acolho nenhuma das teses referidas. Creio, como o prezado autor Jorge Reis Novais, que o ius aedificandi é inerente ao direito de propriedade privada, sendo também um direito fundamental, mas não apoiando a minha posição em normais ordinárias, as quais podem ser alvo de alterações. Fundamento a minha posição na própria Constituição, pois é tal questão reportada aos direitos fundamentais e é nela que estes se encontram. O ius aedificandi integra assim, a meu ver, o conteúdo do direito de propriedade, partilhando da opinião de Jorge Reis Navais que salienta que “(…) o jus aedificandi tem uma natureza de jusfundamentalidade que lhe advém da sua associação natural e histórica à propriedade privada do solo e, consequentemente, ao direito de propriedade privada”.
    Desde o Direito Romano que o ius aedificandi surge como uma faculdade inerente ao direito de propriedade, que sempre possuiu uma dimensão económica que se apresentou fortemente acentuada no Estado Liberal. Porém, com o Estado Social, o direito de propriedade privada ficou sujeito a acentuadas limitações em face de outros direitos fundamentais e à prossecução do interesse público.
    Relativamente à questão da indemnização, cabe referir que para a tese publicista, tal direito acaba por nunca existir, pois à partida se o ius aedificandi é concedido pela autoridade pública, falham os pressupostos para tal indemnização. Só em casos bastante excepcionais é que seria admissível, como no caso de violação do princípio da igualdade ou da protecção da confiança. Tal tese, salvo o devido respeito, não permite salvaguardar adequadamente a limitação à discricionariedade do planeamento urbanístico e nem sequer permite uma preocupação com a fundamentação dada aos particulares. Não partilhando da tese publicista, também não concordo que os proprietários de toda e qualquer propriedade em que legislação posterior não permita concretizar o ius aedificandi, sejam indemnizados, uma vez que o Estado tem grandes limitações económicas.
    Cabe mencionar quando devem ser atribuídas indemnizações, que não devem ser só concedidas em caso de sacrifício especial e anormal. Há que averiguar em concreto se o terreno já tinha ou não à partida aptidão edificativa. Julgo que para os casos em que à partida tal aptidão não existe, nunca foi viável ao particular construir, pelo que, mesmo que posteriormente surja legislação que limite o ius aedificandi, este nunca foi possível pela própria natureza do terreno e nesse caso, tendo em conta as limitações financeiras do Estado, não poderá haver lugar a uma indemnização. No caso de um terreno ser apto a construir, a solução será diversa. Nesses casos deve existir indemnização, valor esse que deve depender da vinculação situacional dos solos, da natureza e grau de consolidação dos seus direitos.
    Tal indemnização não é consagrada ao nível da lei. Existem os artigos 18º/2 da Lei de Bases da política de ordenamento do território e de urbanismo, 143º do Decreto-Lei nº380/99 e 8º do Código das Expropriações, no entanto, consagram o direito à indemnização em casos muito restritos. Creio que a limitação ao ius aedificandi constitui uma expropriação dessa mesma faculdade, pelo que de acordo com o artigo 62º/2 da C.R.P., os casos de terrenos aptos a edificar em que surja leis posterior a limitar tal faculdade, devem ser indemnizados.
    É certo o que é referenciado no acórdão “a especial situação da propriedade – seja a decorrente da sua própria natureza ou, antes, a que se liga à sua inserção na paisagem – importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo. E, por isso, essa proibição, sendo, como é, imposta pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade, não pode ser havida como inconstitucional”. Porém, deve existir uma indemnização pois no momento em que o proprietário adquiriu o terreno, a restrição de tal faculdade equivale a uma medida expropriatória, já que o particular deixará de dar finalidade ao terreno, finalidade essa que determinou a compra do respectivo terreno.
    Em relação à inconstitucionalidade orgânica, é facto aceite que quanto à alegada inconstitucionalidade orgânica, este argumento não parece procedente, uma vez que, concordando com o acórdão em questão, o ius aedificandi (o direito de urbanizar, lotear e edificar) é uma faculdade incluída no direito de propriedade, faz parte da sua essência do direito de propriedade. E o direito de propriedade não é absoluto. Deste modo, creio que não houve violação do artigo 165º/1 b) C.R.P.. O direito de propriedade faz parte da matéria relativa da AR, no entanto, como foi explicitado acima, com a revisão constitucional de 1997 permitiu-se a distribuição de competências entre Estado, regiões autónomas e autarquias locais. No entanto, não concordo com Fernando Alves Correia que salienta que o ius aedificandi não se integra no direito de propriedade privada. Creio que o ius aedificandi constitui uma faculdade inerente ao direito de propriedade, sendo por vezes tal faculdade condicionada pela actividade administrativa, seguindo a linha de pensamento de Diogo Freitas do Amaral.
    É referenciado no respectivo acórdão que “o direito de edificar, mesmo entendendo-se que é uma faculdade inerente ao direito de propriedade, para além de ter que ser exercido nos termos desses planos, acaba, verdadeiramente, por só existir nos solos que estes qualifiquem como solos urbanos”. Creio que tal seja correcto, no entanto, há que salientar que a faculdade de edificar, lotear ou urbanizar sendo inerente ao direito de propriedade não deveria ser condicionada futuramente por legislação posterior à compra da propriedade, frustrando assim as expectativas legítimas dos adquirentes e os fins para os quais se adquiriu o terreno, sob pena de tal direito de propriedade corresponder somente um título que não pode ser usufruído, ficando inutilizado. Se tal faculdade de edificar é possível aquando a compra de um solo e, posteriormente é frustrada como no caso do acórdão em questão, deve o adquirente ser indemnizado. E tal indemnização deve ser atribuída quer o proprietário já tenha licença ou não, uma vez que, mesmo que o particular não tenha pedido licença por esta caducar num curto espaço de tempo, não quer dizer que o terreno não possua aptidão edificativa nem que o particular não pretenda edificar em tal terreno. A meu ver, tal consubstanciaria uma violação do princípio da igualdade, pois não é a licença que atribui o ius aedificandi, este já é antecedente a tal acto jurídico, é parte integrante do direito de propriedade. O regime jurídico da REN é omisso quanto a tal indemnização, a qual a meu ver deveria ser consagrada, pois o particular que adquire um terreno que no momento é apto a edificar, essa área ao ser abrangida pela delimitação da REN irá ficar inutilizada por o adquirente não poder cumprir o fim para o qual o adquiriu. Isto acarreta muitos custos e assemelha-se a uma medida expropriatória, como já foi dito, devendo ao adquirente ser atribuída uma indemnização, pois ao adquirir o terreno o direito a edificar era permitido e daí a decisão de o adquirir, pelo que faz sentido que seja atribuída uma indemnização tendo em conta os parâmetros acima enunciados. A faculdade de edificar faz criar na esfera jurídica do adquirente expectativas legítimas e que, a sua frustração põe em causa o princípio da confiança legítima.
    O que foi exposto até aqui não quer dizer que não concorde que o direito fundamental ao ambiente, em caso de colisão de direitos, não prevaleça. Creio que em caso colisão o direito fundamental ao ambiente, como interesse público também, deve sobrepor-se, tal como sucede neste acórdão. O direito ao ambiente é, por um lado, direito subjectivo, por possuir uma dimensão negativa de defesa contra ingerências públicas e privadas e, por outro lado, também compreende uma dimensão positiva por ser um conjunto de valores e princípios que estabelecem deveres de actuação e tarefas de concretização para os poderes públicos. No entanto, a esfera do adquirente da propriedade também deve ser tutelada.  

  4. Anónimo disse...

    Analisando o acórdão do Tribunal Constitucional do ponto de vista da matéria de direito, em apreço, estão questões relativas à inconstitucionalidade orgânica, formal e material do decreto-lei n.º93/90, de 19 de Março, que contempla o regime da REN.
    Relativamente à inconstitucionalidade orgânica, o problema levanta-se quanto às normas do artigo 17.º n.º1 a 6 do decreto-lei que consagra o regime da REN, entendendo-se que as mesmas se referem a matéria de reserva relativa da Assembleia prevista no artigo 168º alienas b) e l) da CRP (actual artigo 165º alíneas b) e l) da CRP), carecendo o governo de autorização legislativa neste domínio.
    O facto das normas enunciadas versarem sobre uma faculdade incluída no direito de propriedade que é o ius aedificandi e, considerando a natureza análoga deste direito em relação aos direitos, liberdades e garantias, inscrevendo-se, nessa medida, na reserva parlamentar constante da alínea b) do artigo 165º da CRP, levaria à consideração de que o decreto-lei elaborado pelo governo seria inconstitucional em virtude de violar o referido disposto constitucional (posição da parte recorrente).
    Contudo, quer optando por um entendimento baseado na premissa de que o direito de propriedade inclui o direito a edificar, construir e lotear ou adoptando uma posição no sentido de negar esta faculdade como integrante do direito de propriedade, o Tribunal chegou, à conclusão de que o governo não editou normas de direito de propriedade e, portanto, não invadiu a reserva relativa da Assembleia prevista no preceito acima referido.
    Quanto à primeira premissa, mesmo que se considere que o direito a construir integra o direito de propriedade, como refere o tribunal constitucional “(…) não se trata de faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição(…), dessa forma, e atendendo ao facto da “(…)reserva parlamentar abranger apenas "as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos ‘direitos análogos’, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias.”, o governo não estaria a legislar sobre matéria que carecesse de autorização da AR.
    Se, ao invés, se defender a posição de que o ius aedificandi não se inclui no direito de propriedade, está-se claramente numa situação em que normas criadas não versam sobre este direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, não estando posta em causa a reserva parlamentar.
    No que respeita à inconstitucionalidade orgânica baseada no artigo 165.º alínea l) da CRP, o tribunal entende que a regulação da REN não consubstancia necessariamente um meio de intervenção dos solos pois se assim o fosse, “(…) perderia sentido a atribuição, à Assembleia da República, de competência reservada para legislar apenas sobre as bases do sistema de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico(…)”.
    Aludindo brevemente à inconstitucionalidade formal, não parece neste sentido que o recorrente tenha razão, visto que a constituição não exige que o governo mencione a alínea do preceito constitucional ao abrigo do qual exerce a sua competência legislativa, logo o erro na indicação da alínea ao abrigo da qual legisla apenas constitui uma mera irregularidade que não origina inconstitucionalidade formal.
    Passando para a questão da inconstitucionalidade material, o que está em causa saber é se as normas referidas do decreto-lei 93/90 violam os artigos 62.º, 65.º n.º4 e 266.º n.º1 da CRP.
    Nesta matéria, volta-se ao problema de considerar o direito de construir um elemento integrante ou não do direito de propriedade.
    Se optar no sentido de não admitir o ius aedificando enquanto parte do direito de propriedade, chega-se à conclusão que a proibição de edificar não constitui uma restrição ao direito de propriedade.
    Adoptando a outra posição por se considerar que o ius aedificandi encontra-se incluído no direito de propriedade, entende-se que as proibições ditadas pela REN, e que implicam condicionamentos ao direito de construir apenas se justificam para resolverem os conflitos entre o direito de propriedade e as exigências de protecção do meio ambiente. Assim, como reitera o Tribunal Constitucional, “a proibição de construção, sendo, como é, imposta pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade, não pode ser havida como inconstitucional”.
    Atendendo a estas formulações, concordo com a decisão do Tribunal Constitucional no sentido da constitucionalidade do respectivo decreto, quer em termos orgânicos quer em termos materiais e até formais, pois, se por um lado, o governo não está a legislar sobre o conteúdo essencial do direito de propriedade não se pode considerar que tenha havida uma invasão à reserva parlamentar e, por outro, estando em causa restrições ao direito a edificar estas são legitimadas em virtude da situação de especialidade da propriedade (vinculação situacional) devidamente justificadas em função do conflito de direitos fundamentais.
    Um último ponto a frisar, é o facto do Regime da REN tal qual como está configurado não consagrar o direito a indemnização. Como vem referido no acórdão, “ (…) a proibição de construir (e, obviamente, a de lotear e urbanizar) decorrente da natureza intrínseca da propriedade ou da sua especial situação não dá, em princípio, direito a indemnização (…)” - aludindo à ideia da vinculação situacional.
    Na minha opinião, esta situação afigura-se como injusta para aquele que vê a sua posição jurídica desprotegida em virtude de ficar impedido de exercer o seu direito de propriedade na sua plenitude (integrando o direito a construir, lotear, edificar) ficando tal direito completamente inutilizado, particularmente, nos casos em que aquelas proibições imponham prejuízos anormais e especiais, configurando verdadeiras medidas expropriativas (reitero a posição de Fernando Alves Correia).
    Apesar de ser aceite que o direito de propriedade não é um direito absoluto e, tal como os restantes direitos, liberdades e garantias, comporta restrições, muitas vezes, necessárias em virtude da colisão de dois bens fundamentais (in case direito de propriedade versus direito ao ambiente), é de salientar que quando as mesmas se afiguram excessivamente lesivas ao ponto de serem equiparadas a uma expropriação, impõe-se o direito de indemnização (recorrendo a aplicação analógica das normas do código das expropriações relativas a esta matéria).
    Nesta óptica, admitindo que o direito de construir é um direito fundamental que integra o direito de propriedade (tese dita privatista), e que pode ser restringido, cumpre apenas determinar em que medida essa restrição dá lugar a indemnização e em que casos é que a confiança e as legítimas expectativas merecem ser tutelados.
    Fora das situações extremas (existência prejuízo grave e sério em que o direito a indemnização é indiscutível em razão da restrição ser equivalente a uma expropriação), é necessário avaliar e ponderar vários factores relevantes na situação concreta, nomeadamente, a própria intensidade da restrição, mensurável objectivamente através dos danos patrimoniais sofridos, a vinculação situacional dos solos, o grau de consolidação dos direitos, o peso do interesse prosseguido e os princípios da protecção da confiança, da igualdade proibição de excesso e da dignidade da pessoa humana (de acordo com JORGE REIS NOVAIS).
    Assim, se a restrição incidir sobre um solo inserido em zona de desenvolvimento urbano, dotado de infra-estruturas e o plano decidir pela sua afectação a espaço verde privado, deve haver indemnização. Pelo contrário, a proibição de edificar em solo situado em perímetro urbano, mas de estrutura em declive sem as mínimas condições de segurança, não deve originar qualquer dever de indemnização.
    Em oposição aos defensores das teses publicistas que, no caso de os terrenos possuírem aptidão edificativa e serem por lei integrados em zona verde privada, na REN, não consideram que haja lugar a qualquer indemnização pelo simples facto do particular não ter direito a edificar em virtude da Administração não lho ter concedido, defendo que o respectivo, tendo em conta os prejuízos sofridos e em razão de ser titular do direito de edificar por o considerar inerente ao direito de propriedade, deve ser indemnizado em nome do principio da tutela da confiança e até, de justiça ambiental (estando em causa indemnização por acto lícito).

    Erica Cruz
    Subturma 11  

  5. Anónimo disse...

    O tema que me proponho a analisar, tendo por base o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 544/01 que declara a constitucionalidade do regime da REN (Reserva Ecológica Nacional), assenta em saber se o direito de propriedade comporta o direito a construir (ius aedificandi). Cumpre, antes de mais, referir que aquando do acórdão em questão, a última alteração feita ao DL 93/90 de 19 Março foi o DL 79/95 de 20 Abril, não estando em vigor o actual DL 180/2006.
    A recorrente alega que o acto recorrido enferma de violação da lei e aplicação de normas inconstitucionais, tendo sido violado o art. 168º/1a) e nº2CRP (actual 165º/1b e nº2), art. 4º e 17º do DL nº 93/90. Este último restringiu o direito de propriedade (art. 62º CRP), direito fundamental, sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias, sem que tenha havido prévia lei de autorização legislativa (o que viola art. 168º/1a) e nº2 (actual 165º/1b e nº2 CRP).
    A entidade recorrida alega que o regime da REN é um limite ao direito de propriedade (art. 62º CRP), o qual não é um direito absoluto, apesar de constitucionalmente garantido, comportando restrições necessárias à defesa de outros direitos e interesses com igual consagração constitucional e que o governo só precisaria de uma autorização legislativa para estabelecer o regime da REN, se a Assembleia da República não tivesse aprovado, anteriormente, a Lei de Bases do Ambiente (art. 1º e art. 27º/1d) Lei 11/87 de 7 Abril).
    Esta questão chegou ao Tribunal Constitucional. Quanto à inconstitucionalidade orgânica, alegada pelo recorrente, do art. 17º/nº1 (em conjugação com o art. 4º/nº1d) Anexo II) ao nº6 do DL 93/90 de 19 Março (regime da REN), o Tribunal Constitucional decidiu pela constitucionalidade das referidas normas, declarando que o “ius aedificandi” não se inclui no direito de propriedade privada, sendo antes o resultado de uma atribuição jurídica pública decorrente do ordenamento jurídico urbanístico, designadamente dos planos, ou seja, um poder que acresce à esfera jurídica do proprietário, nos termos e nas condições definidas pelas normas jurídico-urbanísticas. E por isso “apesar do direito de propriedade ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias” e “ não sendo o ius aedificandi inerente ao direito da propriedade do solo, o Governo, ao editar o DL nº351/93 de 7 Outubro “ (relativo a licenças de loteamento), não editou normas sobre o direito da propriedade, logo não invadiu a reserva parlamentar relativamente aos direitos, liberdades e garantias (art. 168º/1a) e nº2, actual 165º/1b e 2 CRP). Mas mesmo quem entenda que o direito de urbanizar, lotear e edificar seja uma faculdade inerente ao direito da propriedade do solo, não estão em causa faculdades que façam sempre parte da essência do direito propriedade, pelo que o governo não invadiu a reserva parlamentar. Tal reserva só abrange, as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos direitos análogos.
    O Tribunal Constitucional também decidiu pela não inconstitucionalidade formal das normas do DL 93/90 pelo facto do Governo não ter feito referência à Lei de Bases do Ambiente, diversa daquela que fez, quando emitiu o diploma em questão.
    O tribunal declarou que a Constituição nada determina sobre a necessidade do Governo, ao legislar sobre matérias da reserva relativa da AR ou ao desenvolver bases gerais de regimes jurídicos ter que invocar expressamente o art. 201º/nº1 da CRP, visto que apenas o nº3 do art. 201º exige que o governo indicasse a lei de autorização legislativa ou a lei de bases ao abrigo da qual aprovava um determinado diploma. Este vício gera apenas uma mera irregularidade, e deve considerar-se satisfeita a exigência contida no art. 201º/nº3, quando o Governo apenas no preâmbulo do diploma aprovado indica expressamente a Lei de Bases do Ambiente.
    No que respeita à alegada inconstitucionalidade material, o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL decidiu pela não inconstitucionalidade, recorrendo ao acórdão nº329/99 de 2 Junho, segundo o qual “a especial situação da propriedade importa uma vinculação também especial, que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo. E, por isso, essa proibição, sendo, como é, imposta pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade, não pode ser havida como inconstitucional”.
    No que respeita ao dever de indemnizar, o Tribunal Constitucional declarou que a proibição de construir que decorre da natureza intrínseca da propriedade ou da sua especial situação, não dá, em princípio, direito a indemnização. Contudo, tal já não acontece, quando essa proibição implica um dano de gravidade e intensidade tais, que torne injusta a sua equiparação à expropriação. Neste caso deverá ser paga uma indemnização.
    Assim quando se entenda que o direito de construir não integra o direito de propriedade, a proibição de construir não se traduz numa restrição do direito e mesmo quando se entenda que o ius aedificandi faz parte do direito de propriedade, as proibições de construção e limitações impostas pela Reserva Ecológica Nacional “resultam da necessidade de resolver as situações de conflito entre o direito de propriedade e as exigências de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico”, sendo impostas pela própria natureza do direito de propriedade. Refere também que ainda que se entenda que haja uma restrição do direito de propriedade, ela seria justificada “pela hipoteca social que onera a propriedade privada do solo” e como tal está conforme a tutela constitucional do direito de propriedade e não viola os princípios da igualdade, justiça, proporcionalidade e prossecução do interesse público e boa administração.
    Cabe-nos agora, verificar qual a posição da doutrina portuguesa relativamente a esta questão.
    O proprietário de um terreno incluído na Reserva Ecológica Nacional não pode exercer as actividades previstas no art4º/nº1 do Decreto-lei 93/90 de 19 Março (última alteração DL 180/2006 de 6 Setembro) sem previamente obter uma licença, uma autorização ou uma aprovação administrativa para tal. No entanto estas proibições não possuem um carácter absoluto, visto que a Administração tem a possibilidade de derrogar a proibição, autorizando uma actuação nas zonas delimitadas (art4º/nº2 e nº3 DL93/90).
    De tudo isso se denota a existência de um conflito permanente entre o direito à propriedade privada (art62º CRP) e o direito do ambiente (art66º CRP).
    O direito à propriedade não goza do mesmo estatuto e tutela constitucional de que beneficiou outrora, não é considerado um direito absoluto e ilimitado. Apesar de não se encontrar na parte dos direitos, liberdades e garantias, deve ser reconhecido ao direito de propriedade um estatuto jurídico constitucional análogo aos direitos, liberdades e garantias, estando assim submetido ao regime que vigora no art. 18º CRP, ou seja, é um direito directamente aplicável e que vincula, directamente, entidades publicas e privadas e também pode ser restringido nos casos previstos, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
    O conteúdo do direito da propriedade varia em função da natureza do objecto sobre o qual o direito da propriedade incide, e goza de um determinado e específico estatuto diferente uns dos outros.
    É relativamente à propriedade do solo que a questão do conteúdo do direito de propriedade e da vigência da sua função social assumem especial importância, visto que a propriedade do solo está sujeita ao exercício de uma função socio-ecológica, tendo o legislador a tarefa de harmonizar o interesse social com o interesse individual do seu proprietário.
    A Reserva Ecológica Nacional visa proteger e conservar a natureza, o equilíbrio ecológico e o património cultural, reservando à Administração a tutela de certos espaços qualificados como REN, impondo assim várias limitações ao exercício das faculdades que integram o direito de propriedade.
    Cabe então, saber se o art62º CRP protege o conteúdo do direito de propriedade.
    A opinião minoritária da nossa doutrina é no sentido que o preceito em causa não faz qualquer alusão expressa à garantia constitucional do conteúdo para o direito de propriedade privada, e a constituição remete para o legislador ordinário a fixação deste. Assim a lei teria competência para regular o direito de propriedade.
    Contudo, Rui Medeiros, Alves Correia, Maria Elizabeth Fernandez entendem que a Constituição “não consagra, apenas, um direito à propriedade privada, mas, também, um direito de propriedade privada”. O uso “do bem de que se é proprietário é, a dimensão do direito de propriedade que consegue (…) aproximar este direito da liberdade pessoal”. Se o próprio uso não fosse objecto de tutela constitucional, não haveria razão para, nos termos do nº2 art62º CRP, se atribuir indemnizações das requisições efectuadas com fundamento no interesse público.
    No entanto cabe ao legislador ordinário complementar o conteúdo do direito de propriedade (direito fundamental) sujeito à garantia de propriedade, mas também sujeito à função social que desempenha, sendo necessário fazer uma ponderação justa e proporcional dos interesses dos particulares e a defesa do ambiente, ou seja, cabe ao legislador compatibilizar o direito fundamental à propriedade com a prossecução dos interesses ambientais e inerentes ao ordenamento do território (sendo a Lei 93/90 um reflexo dessa compatibilização) podendo conformar, restringir, regular ou concretizar o exercício do direito de propriedade com os interesses ambientais ou ecológicos da comunidade através de uma ponderação (art18º/2 CRP).
    Cabe agora responder à questão: o ius aedificandi integra o conteúdo do direito de propriedade?
    Entre nós há autores que negam que o ius aedificandi faz parte do conteúdo do direito de propriedade, considerando não existir um direito originário à construção no ordenamento jurídico-constitucional português. Este só se adquire mediante uma autorização ou licença de construção que desempenha uma função constitutiva ou através de mecanismos de concessão jurídico-pública decorrentes do sistema de funcionamento do plano urbanístico (R. Erhadt Soares). Também Alves Correia nega a integração originária do ius aedificandi no conteúdo do direito de propriedade, no entanto, este autor reconhece que a garantia constitucional abrange um poder-ter e um poder-utilizar. Esta faculdade acresce à esfera do proprietário nos termos e condições definidas pelas normas jurídico-urbanísticas, mediante actuação da Administração, sendo esta que cria o direito de edificação na esfera do particular.
    Outra parte da doutrina defende que o direito a edificar é uma faculdade inerente ao direito de propriedade privada, o qual, tendo em conta os vários condicionalismos que bloqueiam o seu exercício, se revela apenas em estado potencial, ou seja, é uma faculdade inerente ao direito de propriedade, mas apenas pode ser desenvolvida nos termos das normas urbanísticas ou de natureza ambiental.
    Freitas do Amaral considera que o ius aedificandi é uma faculdade que integra o conteúdo constitucional do direito de propriedade visto que se o proprietário pode ceder a outrem o direito de construir sobre o seu terreno é porque dispõe desse direito; o proprietário goza desta faculdade independentemente de existir plano urbanístico para a zona onde o terreno se situa, o que demonstra que o direito de construção não é atribuído pelo plano; o facto do direito de construir só poder ser exercido, relativamente a terrenos qualificados como REN, nos termos da licença ou autorização administrativa, não significa que o direito de propriedade não comporte tal faculdade.
    Rui Medeiros e Oliveira Ascensão defendem a inclusão do ius aedificandi no conteúdo do direito de propriedade, visto que a constituição protege, para além da titularidade, o aproveitamento dos bens de que se é proprietário. O direito de construir é inerente ao direito de propriedade, apesar de estar sujeito a limitações que podem até retirar, na totalidade, a capacidade de construir (Oliveira Ascensão). O facto do proprietário não possuir faculdade de decidir se e como pode construir no seu terreno, não impede que a faculdade de construção integre o direito de propriedade privada, até porque o direito de propriedade não é um poder absoluto, inviolável, intocável ou ilimitado nos termos da CRP (Rui Medeiros).
    Maria Elizabeth Fernandez refere que o facto do proprietário carecer de licença da Administração para poder legitimar a construção no seu terreno, aproxima-se da figura das incapacidades de gozo relativas, visto que as restrições que a lei impõe ao exercício do direito a construir por parte do proprietário privado assentam na circunstância daquela “faculdade se relacionar directamente com o interesse público no ordenamento territorial e urbanístico ou na protecção do ambiente, na promoção da qualidade de vida dos cidadãos, pelo que se pode falar por parte do proprietário privado de uma indisponibilidade ou ilegitimidade”. Assim o ius aedificandi, para esta autora, está dentro da tutela constitucional da propriedade privada, apesar de “só poder ser exercido se, quando e como a Administração com base na lei, entender que aquela faculdade não afecta os interesses públicos e colectivos que a constituição incumbiu o Estado de concretizar para beneficio dos cidadãos”.
    O Tribunal Constitucional nos acórdãos nº341/86 e 131/88, entendeu que o ius aedificandi integrava o conteúdo constitucional do direito de propriedade privada, apesar de não ser referido expressamente no art62º CRP.
    Relativamente à questão da atribuição de uma indemnização, a doutrina portuguesa reclama maioritariamente a responsabilidade do Estado, pelo facto de leis imporem restrições ou limitações do uso da propriedade privada, atendendo a interesses ambientais e ecológicos.
    A maioria dos autores refere que os danos ou lesões provocados pelas referidas restrições fundamentam-se na responsabilidade do Estado por factos lícitos.
    Gomes Canotilho refere que quando o Estado emana uma lei que limita e restringe o direito dos cidadãos, de forma a salvaguardar um interesse público, intervém de modo licito, visto que a Constituição autoriza que o direito de propriedade seja restringido, desde que tal se revele necessário, adequado e proporcional à realização de um interesse público superior. No entanto o Estado pode, com esta sua actuação, provocar danos ou lesões na esfera jurídico-patrimonial do individuo, mas para este autor, a violação das normas de competência ou de processo de formação de leis não constitui um sacrifício grave , logo não pode fundamentar de modo autónomo uma indemnização. Mas uma norma que sofre do vício de inconstitucionalidade formal ou orgânica e provoque danos graves na esfera do cidadão pode fundamentar o fenómeno ressarcitório. Quanto à inconstitucionalidade material, o autor, admite que possa haver uma responsabilização do Estado por factos legislativos ilícitos.
    Rui Medeiros considera que a responsabilidade não se fundamenta na violação do principio da igualdade perante os encargos públicos, mas por preterição das garantias asseguradas pelo art62º CRP, sendo que a garantia do valor da propriedade pressupõe a afectação do conteúdo essencial dos direitos subjectivos patrimoniais. O direito à propriedade privada opõe-se a quaisquer agressões injustificadas, obrigando na hipótese de afectação da propriedade a uma função social mais elevada, a um direito de indemnização, não estando condicionada a garantia do valor da propriedade à verificação de um sacrifício especial.
    Fausto de Quadros defende que o principio que o principio da igualdade dos cidadãos (art13º CRP) impõe perante os encargos públicos que as restrições aos direitos sejam indemnizados. Qualifica expressamente como actos análogos à expropriação as restrições para fins ecológicos, ambientais ou de ordenamento do território.
    Estes autores, defendem, de um modo geral, a ressarcibilidade dos vínculos ambientais impostos por acto legislativo e que restringem o uso dos terrenos por parte dos proprietários.
    Rogério Soares e Alves Correia negam a ressarcibilidade dos vínculos impostos pelo Estado sobre a propriedade privada. O primeiro autor nega a atribuição de uma indemnização, qualquer que seja a sua natureza, pois considera que o ius aedificandi não é inerente ao direito de propriedade privada. Já o segundo autor nega a atribuição de uma indemnização quando apenas se restringe o uso dos solos por questões ambientais, defendendo a ressarcibilidade dos vínculos urbanísticos que se consubstanciem em medidas expropriativas, pois apenas estes são susceptíveis de provocar danos ou lesões graves na esfera do proprietário.
    Para Maria Elizabeth Fernandez, tanto nos vínculos ambientais como nos vínculos urbanísticos o legislador exerceu uma margem de discricionariedade, e diz que se deve dar um tratamento unitário quanto aos mesmos, visto que ambos são executados mediante instrumentos de ordenamento do território comuns e também porque, “relativamente ao mesmo terreno pode incidir, ao mesmo tempo, um juízo estético e um juízo técnico-objectivo que conclua pela sua categorização” como área sujeita a várias restrições e condicionantes quanto ao direito de construir, devendo ser atribuído ao particular o direito de ser indemnizado.
    Concluo, concordando com a existência do ius aedificandi no conteúdo do direito de propriedade, apesar do seu exercício estar sujeito a prévia autorização da Administração, sendo que, quando é feita uma restrição a este direito, nomeadamente pela qualificação do terreno como espaço REN, o particular deverá ser indemnizado pelos danos sofridos. Por tudo o que foi dito, manifesto a minha concordância com as conclusões do acórdão em análise, no que respeita à constitucionalidade do regime da REN.








    Marta Araújo nº14637
    Sub-turma nº 1  

  6. Subturma 1 + 5 disse...

    A constitucionalidade da REN (Acórdão 544/01)


    O acórdão em questão trata de uma matéria particularmente sensível: A Reserva Ecológica Ambiental. Recorrente e Recorrida ultrapassaram todas as instâncias de recurso até chegar ao Tribunal constitucional que, definitivamente, resolveu as pertinentes questões suscitadas. Cumpre aqui recordar que a o TC tomou em consideração a redacção dada pelo DL 316/90 de 13 de Outubro ao DL n 93/90 de 13 de Outubro.

    Cumpre então recordar que, na apreciação das várias questões sobre a inconstitucionalidade orgânica, material e formal suscitadas pelo Recorrente, o Tribunal teve necessidade, a quando da delimitação do objecto do recurso e pelo facto da recorrente não ter especificado, de definir qual a redacção que o deveria ter por base. Assim, concluiu por tomar consideração a redacção dada pelo DL 316/90 de 13 de Outubro ao DL n 93/90 de 13 de Outubro.

    Em relação ao objecto do recurso, a decisão recorrida apenas aplicou as normas do artigo 17.º, n.º1 (em conjugação com o 4.º n.º 1 e com a alínea d) do anexo II) a 6.º do DL 90/93, normas essas que, em certas áreas ainda não delimitadas nos termos do artigo 3.º (isto é, ainda não definitivamente incluídas na REN), sujeitaram a aprovação certas obras e empreendimentos e regulam o procedimento tendente a tal aprovação. Assim sendo, o objecto do Recurso para o TC é a apreciação da constitucionalidade das normas mencionadas supra.


    Sobre a Inconstitucionalidade orgânica:

    a) Fundamentação do Recorrente:

    Ao longo das várias instâncias de recurso, reclama o recorrente que as normas do artigo 17.º, n.º1 (em conjugação com o 4.º n.º 1 e com a alínea d) do anexo II) a 6.º do DL 90/93º padecem de inconstitucionalidade orgânica. Fundamenta este entendimento em argumentos de vária ordem. Começa então por dizer que “a mais frisante diferença entre actos legislativos ocorre em duas hipóteses distintas: entre leis de autorização legislativa e decretos-lei publicados no uso de autorização e entre leis e princípios ou bases gerais dos regimes jurídicos e decretos-lei em seu desenvolvimento”. Assim, na opinião do Recorrente, o DL 90/93 padece de inconstitucionalidade orgânica por restringir um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (o direito de propriedade) e, ao consubstanciar uma regulamentação de meios e formas de intervenção nos solos (artigo 168º, n.º 1, al. b) e 1) da CRP na redacção de 1990) sem que para tanto o Governo dispusesse de autorização legislativa indispensável para legitimar a sua actuação em matérias de competência relativa da AR.

    b) Fundamentação do Acórdão Recorrido (Supremo Tribunal Administrativo):

    Sobre esta questão o STA pronunciou-se no sentido em que o DL 93/90 não foi emitido irregularmente e sem mais. O acórdão refere que este DL foi emitido, sim, na sequência da Lei de Bases do ambiente (LBA), nomeadamente no seguimento do seu artigo 27º que nos diz que os instrumentos de política ambiental e do ordenamento do território, além da reserva agrícola nacional, a REN. Com efeito, estamos perante um DL de desenvolvimento e submetido a uma lei de bases, tal como constitucionalmente consagrado e não decorrendo daqui, qualquer inconstitucionalidade.
    Sobre o direito de propriedade, o STA acrescenta argumentos doutrinários de peso. Explica, desde logo, que o direito de propriedade não constitui um direito absoluto, entando sujeito a fortíssimas limitações. Estas decorrem, particularmente, do regime e do domínio urbanístico e do ordenamento do território. E é daqui que resulta a magna questão (discutida, na sua maioria das vezes, em sede de Direito do urbanismo, embora neste caso se imponha) sobre se do direito de propriedade do solo, garantido pelo artigo 62.º n.º 1 da CRP, fará ou não parte o direito a construir - ius aedificandi – ou se, este antes radica no acto administrativo autorizativo (licença de construção), pelo que a utilização dos solos está sujeita a uma rede complexa de planos de ordenamento, autorizações, licenças, proibições materialmente de ónus ou restrições socialmente adequadas, nuns casos, ou de sacrifícios especiais legitimadores de um direito indemnizatório, noutros casos.
    O STA não entende que há uma violação ou restrição do conteúdo do direito de propriedade de certos imóveis.

    c) Fundamentação do Tribunal Constitucional (TC):

    O TC no que diz respeito à inconstitucionalidade orgânica, acabou por fazer o mesmo entendimento que o acórdão recorrido, não dando razão à recorrente.
    A questão mais discutida prende-se, assim, com a problemática do ius aedificandi, ou melhor, com a controvérsia de sabermos se o direito de propriedade inclui, como suas componentes essenciais, o direito de urbanizar (faculdade de dotar o terreno de infra-estruturas urbanísticas), o direito de lotear (faculdade de realizar uma operação de loteamento, entendida como a acção que tenha por objecto ou por efeito a constituição de um ou mais lotes destinados imediata ou subsequentemente à edificação urbana e que resulte da divisão de um ou vários prédios, ou so seu emparcelamento ou reparcelamento) e de edificar (ou seja, a faculdade de erigir uma nova construção no solo), estando apenas o exercício direitos “dependentes” de uma autorização permissiva da Administração Pública ou se, por outro lado, aqueles “direitos” na garantia constitucional de propriedade privada, sendo o resultado de uma atribuição jurídico-pública decorrente do ordenamento jurídico urbanístico, designadamente dos planos. É desta forma que a questão é exposta pelo Professor Fernando Alves Correia.
    Ora, a tese de que o ius aedificandi como componente essencial do direito de propriedade ou como “permanente unicidade do direito de propriedade e da faculdade de de edificação na esfera do domus soli encontra variadíssimos argumentos, provenientes de vários autores ligados a várias ramos do direito.

    Comecemos pela linha jus-civilista do Professor Oliveira Ascensão.

    Remetemo-nos, em primeira linha, para os artigos referentes ao Direito de Propriedade do CC, concretamente para os artigos 1305º, 1344º, 1524.º, 1525.º e 1534.º.
    Ao lermos estes preceitos, poderíamos concluir, desde logo, que o nosso CC inclui o ius aedificandi no direito uso. Porém, não é este o entendimento de, por exemplo, o Professor Oliveira Ascenção. Na opinião do ilustre Professor, o ius aedificandi inclui-se no poder de transformação da coisa, que decorre da faculdade de disposição, não em sentido jurídico, mas em sentido material, por palavras suas “o direito de construir é um atributo natural da propriedade imóvel” apesar de sujeito a limitações que podem mesmo fazer com que este “direito” seja retirado.
    Sobre esta concepção o Professor Alves Correia diz-nos que nos leva a uma visão distorcida da realidade jurídico-urbanistica. Para o Professor, há uma enorme desadaptação com a realidade, pois o proprietário não pode sequer decidir o se e o como pode construir no seu terreno. Remata dizendo que esta questão não é resolúvel a partir de uma ideia civilista do direito de propriedade do solo e do direito a construir, mas de um conceito constitucional, numa perspectiva jus-publicista.
    Não podia estar mais de acordo.

    Outra linha de argumentação surge na linha de pensadores italianos como A. M. Sandulli.

    Este autor argumenta, em favor da tese anteriormente mencionada, que o proprietário é o único que está legitimado a construir ou permitir os outros construir e acrescenta que o proprietário do solo é o único legitimado a ser titular do ius aedificandi. Onde o ordenamento jurídico urbanístico possibilita a edificação, a nenhum outro é consentido construir.
    O professor Alves Correia também afasta a “argumentação italiana” salientando, entre outros argumentos, que este princípio não é totalmente verdade, pois outros titulares de direitos reais, pois outros titulares de reais, como por exemplo, o titular do direito de superfície, têm legitimidade de construir.

    Por fim, salientemos a opinião do Professor Freitas do Amaral e do Professor Paulo Otero.

    Antes de mais, o professos Freitas do Amaral, relativamente aos artigos do CC, extrai a seguinte conclusão: Da possibilidade de constituição por parte do proprietário do terreno de um direito de superfície em benefício de um terceiro, traduzindo na possibilidade deste construir ou manter uma obra no solo, ou no subsolo, concluí-se que o proprietário é titular do direito de contruir mesmo antes de qualquer plano urbanístico o regular. Sucede, porém, que tamém aqui há que conjugar as normas civis com as normas urbanísticas. Na verdade, se atendermos a estas últimas, verificamos que o proprietário apenas pode ceder a um terceiro o direito de construir no seu terreno se as normas jurídico-urbanisticas, designadamente as constantes do plano, antes lho tiverem atribuído.


    Na esteira de que o direito de propriedade é indissociável do direito de construir encontramos a opinião do Professor Diogo Freitas do Amaral e do Professor Paulo Otero. Estes autores, na obra intitulada “Direito do ordenamento do território e Constituição” defendem a posição de que estamos na presença de dois elementos inseparáveis, na medida em que não há propriedade sem a devida construção, sendo a o direito de construir uma das “faculdades em que o direito de propriedade se analisa” , com a particularidade de que apenas o exercício dessa faculdade se encontra dependente de uma autorização da administração. Neste sentido, defendem os mesmos autores que qualquer modificação legislativa operada no âmbito do Ius aedificandi, implicando, por isso, alterações ao mesmo, tem de ser realizada pela Assembleia da República, ao abrigo dos artigos já mencionados supra, pois constitui uma alteração que se encontra na sua reserva de competência. Concluímos então, que perante o caso que agora se analisa, a solução destes dada por estes Professores seria a de dar total razão à Recorrente decidindo no sentido em que existiria, sem dúvida, uma clara violação de um direito análogo a um direito, liberdade e garantia e, por sua vez, operava com este DL uma restrição ao mesmo direito. Esta operação que padeceria de inconstitucionalidade orgânica pelo facto de assistirmos a uma redução de um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (o direito de propriedade) e por consubstanciar uma regulamentação de meios e formas de intervenção nos solos (artigo 168º, n.º 1, al. b) e 1) da CRP na redacção de 1990) sem que para tanto o Governo dispusesse de autorização legislativa indispensável para legitimar a sua actuação em matérias de competência relativa da AR.

    Contudo, não foi este o entendimento do TC que se pronuncia de acordo com a tese do Professor Alves Correia.

    Na opinião do Professor, o ius aedificandi é uma faculdade jurídico-pública atribuída pelo ordenamento urbanístico, em especial, pelo plano.
    Como já foi exposto supra, ao refutarmos as opiniões dos autores mencionados com os argumentos deste mesmo professor, descortinámos inúmeros aspectos inerentes a tese deste professor.
    De entre outros argumentos, realcemos os seguintes:

    1. Em primeiro lugar, diz-nos que a tese contrária se encontra totalmente desfasada da realidade, porque, de facto, a muitos proprietários é vedada a possibilidade de construir.

    2. Em segundo lugar, relembra que a todos os municípios decorre a obrigação de elaborarem e aprovarem Planos de directores municipais.

    3. Princípio da reserva do plano, ou seja, só pode construir-se num terreno quando o plano lhes atribuir vocação edificativa ou o classificar e qualificar como solo urbano, nos termos do 72.º e 73.º do DL 380/99 de 22 de Setembro.

    4. Por fim, indica um motivo relacionado com os mecanismos de garantia do princípio da igualdade em face das medidas dos planos dotados de eficácia plurisubjectiva. Assim sustenta que “… a dependência do ius aedificandi de um acto de atribuição de um poder público, leva nitidamente a melhor sobre a que se lhe impõe”.
    O actual Regime jurídico do urbanismo consagrou o princípio da perequação compensatória dos benefícios e encargos decorrentes dos instrumentos de gestão territorial vinculativos dos particulares, com vista a garantir a observância do princípio da igualdade em face das medidas expropriativas e não expropriativas daqueles planos.

    Todos estes argumentos carecem de aprofundamento teórico, porém não poderá ser efectuado em sede do comentário em causa.

    Tribunal Constitucional:

    Entende o colectivo que o ius aedificandi não se inclui no direito de propriedade privada e que, por esta razão, “é obvio que o Governo, com a edição do Decreto-lei n.º 351/93 de 7 de Outubro, não invadiu a reserva parlamentar atinente aos direitos, liberdades e garantias”. Diz-nos também o acórdão que, mesmo que partilhemos das opiniões dos Professores Freitas do Amaral e Paulo Otero, nem por isso seríamos forçados a concluir que toda a normação que contenha alterações ao ius aedificandi haja de ser produzida pela AR, isto é que nem toda a legislação atinente a direitos de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias análogas se inscreve na reserva parlamentar da AR. De acordo com o com o Acórdão n.º 373/91 cabem na reserva da Assembleia da República as matérias de direitos análogos a direitos, liberdades e garantias que, pela sua natureza e pelo seu conteúdo, e pela sua essencialidade justifiquem aquela intervenção. No entendimento do TC, urbanizar, lotear ou edificar não se incluem na dimensão essencial para a intervenção parlamentar, pois as faculdades acima mencionadas já não são “essenciais à realização do Homem enquanto pessoa”.

    d) Apreciação crítica:

    Apesar de entender e considerar totalmente justificado o entendimento dos Professores Freitas do Amaral e Paulo Otero, não posso deixar de compreender e aplaudir a opinião do Professor Alves Correia. Parece-me obvio que a propriedade em nada se consubstancia sem construção, sem edificar. Por outro lado, a verdade é que nem sempre temos de estar perante um ius aedificandi. Não é um direito permanente nem absolutamente inerente ao direito de propriedade. Nem é coerente pensar (e procurando criar uma situação semelhante à perseguição dos ónus à coisa) num “ónus” de lotear ou de edificar quando falamos em direito de propriedade. Se assim fosse, estaríamos perante uma visão absolutista do direito de propriedade que abarca um sem número de realidades com dignidade tal que carecem de ser são alvo da reserva de competência da AR. Ora, se é certo que o Código de Seabra adoptava uma visão absolutista do Direito de Propriedade, a partir de 1966 esta mesma visão começou a ser alvo de limitações constantes que podemos reconduzir à protecção, cada vez maior, do interesse público em detrimento do interesse particular. Como já referi no comentário relativo à licença ambiental, é lógico que não se trata de um hierarquizar de direitos constitucionalmente protegidos. Trata-se, por outro lado, de pensarmos que estamos permanentemente sujeitos à mutação dos valores sociais e é evidente aos olhos de todos que, se outrora o VALOR tinha por nome “A Propriedade” (lembremo-nos das sociedades feudais), cada vez mais existem limites ao exercício e salvaguarda deste direito em nome de um interesse público. Encontramos limites ao nível da administração pública por forma a tutelar o interesse público e mesmo no código Civil no seu artigo 12…. que se fundamentam no Interesse privado. Logo, há que fazer uma leitura da CRP conforme ao CC e às constantes mutações sociais. Se ainda pesarmos num direito fundamental análogo a construir, mais uma vez não nos podemos alhear das limitações funcionais, que existem, para tutelar o interesse público.

    Sobre a inconstitucionalidade formal

    a) Fundamentação do Recorrente:

    Diz o Recorrente que “Não legislando ao abrigo de uma qualquer lei de autorização legislativa ou em referência à lei de bases do ambiente, o DL 90/93 padece de inconstitucionalidade formal, já que decretou a disciplina jurídica da REN ao abrigo da a) do artigo 201º da CRP (actual 198º), isto é, mediante um Decreto-lei independente”. Na opinião do recorrente, o diploma deveria fazer referência à LBA de forma diversa.


    b) Fundamentação do Acórdão Recorrido (Supremo Tribunal Administrativo):

    O ACORDÃO Recorrido também não dá razão à Recorrente.

    c) Fundamentação do Tribunal Constitucional (TC):

    O Colectivo de juízes pronunciou-se, uma vez mais, de forma contrária às pretensões da requerente. De facto, o artigo 201º, n.º1 não requer a sua menção expressa nem a CRP impõe ao Governo que sempre que legislar sobre matérias de reserva relativa da AR o faça. O n.º 3 apenas se exigia que “…aquando do uso das competências legislativas aí mencionadas, o Governo indicasse a lei de autorização legislativa ou a lei de bases ao abrigo da qual aprovava um determinado diploma”. Assim sendo, não parece ser passível de pronuncia pela inconstitucionalidade formal o facto de o Governo, por lapso, ter indicado uma alínea diferente ao abrigo da qual legislava.
    O Tribunal conclui que “não gera inconstitucionalidade formal a alegada errada indicação da alínea ao abrigo da qual o Governo exerceu a sua competência legislativa., aquando da aprovação do DL 90/93, de 19 de Março, redundando tal vício em mera irregularidade”, portanto, sem qualquer sanção.

    O n.º 3 do 201º também se encontra preenchido quando o Governo apenas no preâmbulo do diploma aprovado indica a lei de bases. Aqui, não se vislumbra qualquer vício.


    Sobre a inconstitucionalidade material:

    a) Fundamentação do Recorrente:

    O Recorrente termina, assim, alegando que, restringindo o Direito de Propriedade com recurso a regras, na sua óptica, inconstitucionais, o DL 93/90 padece de inconstitucionalidade material, na medida em que viola princípios constitucionais tais como o princípio da igualdade, da justiça e da proporcionalidade e o princípio da prossecução do interesse público e da boa administração. Para a Recorrente a inconstitucionalidade das normas decorre da violação do artigo 18.º, n.º 3 da CRP.

    b) Fundamentação Supremo Tribunal Administrativo (STA):

    Dá razão à Recorrida.

    c) Fundamentação Tribunal Constitucional (TC):

    Entende o Tribunal que, para quem defenda a opinião do Professor Alves Correia, não poderá concluir que a proibição de construir num determinado solo, em que antes a edificação era possível, não se traduz em qualquer compressão ou restrição do Direito de propriedade. Basta-nos pensar nos argumentos sobejamente clarificados supra para concluirmos, sem demora, que não se vislumbra aqui, como nos restantes casos, qualquer inconstitucionalidade material por violação do artigo 18.º, n.º 3 da CRP.

    Lígia Setúbal, subturma 1, n.º 14413  


 

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