Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 229/2007


Processo nº 1065/2006 - 2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma


Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional


I
Relatório

1. Nos presentes autos, o Tribunal Cível de Lisboa proferiu a seguinte decisão:

De acordo com o artigo 66° do Código de Processo Civil, e 18° nº 1 da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais são da competência dos Tribunais Judiciais somente as matérias que a lei não atribua a outra ordem jurisdicional.
No caso concreto, pretende o requerente que o tribunal emita mandado, que lhe permita proceder à remoção de animais em número superior ao legal, conforme artigo 3° n.° 6 do Decreto-lei n.° 314/2003, de 17-12.
A salvaguarda do ambiente e salubridade nos agregados populacionais são uma atribuição dos municípios (artigo 14° n.° 1 alínea h) da Lei n° 159/99, de 14 de Setembro), realizada em prol do interesse público.
Logo, os actos a realizar pelo ente público competente serão necessariamente actos de gestão pública, por se compreenderem no exercício de um poder público, integrando a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não, eles mesmos, o exercício de meios de coerção.
Assim, decorrendo da lei que o acto administrativo de que se pretende a sindicância é de gestão pública, por se compreender no exercício de atribuições e competências deferidas a uma entidade pública, deveria, à partida, a apreciação do pedido formulado caber aos Tribunais Administrativos, conforme artigos 4° n° 1 alínea b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
No mesmo sentido, vide os Ac. RC de 20-01-87, in Boletim do Ministério da Justiça nº 363, p. 609, Ac. RL 6‑10‑87, in Boletim do Ministério do Justiça n° 370, p. 602, Ac. RL 8-04-92, Boletim do Ministério da Justiça nº 416, p. 693 e Ac. da RE de 7 de Junho de 1990, Colectânea de Jurisprudência, Tomo III, p. 280.
Como se escreveu no Ac. do Tribunal Constitucional nº 158/95, A decisão camarária é caracterizável com acto administrativo na medida em que há aí um comando de um órgão autárquico, prosseguindo e realizando interesses públicos relativamente à remoção de um animal de raça canina, com efeitos jurídicos sobre uma situação individual e num caso concreto.
Ainda, no Ac. do Tribunal Constitucional n.° 579/95, de 20-11, escreve‑se que: problema pressuposto pela decisão de inconstitucionalidade é assim, o da qualificação do acto camarário (a decisão de remoção dos animais) como exercício de função administrativa integrante do poder autárquico. A atribuição de competência aos tribunais de comarca para o recurso da decisão camarária apenas será duvidosa, no plano constitucional, na medida em que o problema anterior for resolvido no sentido da qualificação como acto administrativo da decisão camarária (...) ao prever que “as razões de salubridade ou tranquilidade da vizinhança” (...) são fundamento da decisão camarária de remoção dos animais em causa, integra uma tal decisão no âmbito (...) das atribuições cometidas às câmaras (...)
A tranquilidade da vizinhança ou a qualidade de vida em que pode interferir a instalação de animais em habitações sem as devidas condições para que não resultem incómodos e perigos para a saúde não é um mero problema de conflito de direitos entre sujeitos privados, mas corresponde antes a uma ordenação geral da vida dos agregados populacionais, a um interesse público que compete às autarquias preservar e promover.
Só para uma concepção liberal historicamente datada, segundo a qual os poderes públicos não englobam entre os seus objectivos a promoção de bens colectivos de interesse geral, nomeadamente a qualidade de vida dos habitantes das povoações, é que situações como as referidas (...) poderão ser identificadas como meros conflitos de interesses ou direitos entre sujeitos privados.
Porém, na ordem jurídica do Estado de direito democrático e social, que sedimentou em direitos sociais que desenvolvem os direitos fundamentais individuais, a relevância autónoma dos conflitos de interesses conexionados com a vizinhança, o sossego e a tranquilidade de vida, coloca-se no plano de uma ordenação geral da vida colectiva destinada a assegurar um nível aceitável de qualidade de vida no espaço físico e no ambiente psicológico de cada indivíduo. É esse mínimo de ordenação que justifica medidas condicionantes do espaço de cada cidadão, em ordem a prevenir riscos para os outros.
Uma tal necessidade de defender e preservar a qualidade de vida e o ambiente dos cidadãos nas relações de vizinhança justifica a subtracção de certas situações a uma pura ponderação de interesses sob a égide do direito privado, cujas coordenadas são a igualdade e a liberdade em contraposição à autoridade e à competência características do direito público (cf. Menezes Cordeiro, Teoria Geral do Direito Civil, 1988, p. 11 e ss.), e a sua inserção no direito público. O facto de as relações de vizinhança serem conexionadas com interesses públicos não implica, aliás, que apenas esteja em causa o interesse público. A doutrina do Direito Administrativo reconhece hoje que a prossecuçâo do interesse público não é o único critério de acção administrativa. Também os direitos subjectivos e os interesses legítimos dos particulares constituem limite e critério de acção administrativa (cf. Freitas do Amoral, Direito Administrativo, II, 1988, p. 80 e ss.).
Estamos, assim, perante o exercício de poderes administrativos de competência das autarquias locais, sendo a decisão de remoção de canídeos acto administrativo, à luz de uma definição analítica, segundo a qual o acto administrativo é um acto jurídico unilateral, orgânica e materialmente administrativo e que versa a produção de efeitos jurídicos sobre uma situação individual num caso concreto (cf. Freitas do Amaral, ob. cit., III, 1989, p. 66 e ss.).
***
Posto isto, verifica-se porém, que o Decreto-lei n.° 314/2003, de 17 de Dezembro, artigo 3º n.° 6, dispõe expressamente no sentido de serem competentes os tribunais judiciais para verificação da legalidade do acto administrativo, pressuposto da emissão do mandado requerido. De notar que a emissão de tal mandado não é, nem pode ser, acto meramente formal, antes requer a verificação dos pressupostos legais que ditam tal prerrogativa camarária.
De notar ainda, que a forma processual utilizada – a providência cautelar – preconiza que os tribunais judiciais sejam competentes para a apreciação da correspondente acção declarativa – artigo 383° n.° 1 do Código de Processo Civil – e não se vislumbra qual essa possa ser, senão o recurso contencioso da própria decisão camarária – que declara, definitivamente, a legalidade do acto – sendo este, claramente, de jurisdição administrativa.
***
Esta disposição legal integra-se em diploma exarado no exercício do poder legislativo cometido ao Governo pelo artigo 198° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa.
Ora, tal norma vem alterar, claramente, a definição da competência dos tribunais judiciais, tal como ela resulta do ordenamento jurídico geral, ao atribuir aos tribunais judiciais competência afecta à prática de actos administrativos por um órgão da administração local.
É esta matéria de reserva relativa da Assembleia da República – artigo 165° n.° 1 alínea p) da Constituição da República Portuguesa.
Pelo exposto, e como já decidiu o Tribunal Constitucional, com força obrigatória geral, sobre norma idêntica vertida no Decreto-lei n.° 317/85, de 2 de Agosto, a disposição ao abrigo da qual foi instaurada a presente providência enferma de inconstitucionalidade orgânica, por exarada por órgão incompetente para legislar sobre o matéria em apreço.
Deverá, pois, tal inconstitucionalidade ser declarada, no âmbito da fiscalização sucessiva cometida aos tribunais judiciais, e desaplicada a norma correspondente – artigo 204° da Constituição da República Portuguesa.
Desconsiderada tal norma, conclui-se, do mais que se deixou exarado, que se encontra expressamente excluída da competência dos Tribunais Judiciais a apreciação do pedido deduzido nos presentes autos, por ser para tal absolutamente incompetente em razão da matéria, em conformidade com o disposto nos artigos 101°, 102° n.° 1, 105° n.° 1, 494°, proémio e alínea a) e 495° todos do Código de Processo Civil.
Por todo o exposto, decido:
– Não aplicar, por ferido de inconstitucionalidade orgânica, o artigo 3° n.° 6 do Decreto-lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro;
– Declarar incompetente, em razão da matéria, o presente tribunal para conhecer da providência requerida.


Foi interposto recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da norma desaplicada.
Junto do Tribunal Constitucional, o Ministério Público produziu alegações que concluiu do seguinte modo:


As normas incluídas no Decreto‑Lei n° 314/03 de 17 de Dezembro – aprovando o programa nacional de luta e vigilância contra a raiva animal e regulando a posse e detenção de animais a ela susceptíveis – configuram-se como tendo natureza administrativa, já que visam a realização prioritária do interesse público na área da saúde e qualidade da vida das populações – tendo a natureza de acto administrativo a “notificação”, feita pela autarquia, nos termos do n° 5 do artigo 3º, para o particular pôr termo às situações ilegais, removendo os animais detidos em excesso ou sem condições de salubridade.

A intervenção jurisdicional prevista no n° 6 daquele artigo 3° é expressão do princípio constitucional da “reserva do juiz”, visando possibilitar a execução do acto administrativo nos casos em que ela envolve entrada coerciva no domicílio do requerido – configurando-se, deste modo, como acessória ou instrumental da relação jurídica administrativa em causa.

Sendo o Decreto‑Lei n° 314/03 editado a descoberto de credencial parlamentar, não pode aquela norma inovar no sistema de repartição de competências entre os tribunais judiciais e administrativos, decorrente do ETAF.

Cabe presentemente no âmbito da jurisdição administrativa a tutela de direitos fundamentais do particular, no âmbito de uma relação jurídico‑administrativa, bem como a fiscalização da legalidade de quaisquer actos jurídicos emanados pela Administração no exercício da função administrativa (artigo 4º, n° 1, alíneas a) e b) do ETAF) – cabendo processualmente no âmbito dos processos cautelares, regulados no CPTA, a obtenção de autorização jurisdicional para executar o referido acto administrativo.

Nestes termos, deve a norma desaplicada na decisão recorrida ser interpretada em conformidade com a Constituição, de modo a caber à jurisdição administrativa a competência para a emissão do “mandado judicial” previsto no n° 6 do artigo 3° do Decreto Lei n° 314/03.


Por seu turno, os recorridos contra‑alegaram, concluindo o seguinte:

1° – A norma contida no art° 3° nº 6 do D/L 314/2003 de 17 de Dezembro enferma de inconstitucionalidade orgânica, em virtude de a redacção do respectivo artigo violar e desrespeitar o disposto no art° 165º n° 1 alínea p) da CRP.
2° – A decisão para a remoção dos animais tendo em conta a saúde pública é um acto administrativo, logo, o Tribunal onde foi proposta a providência cautelar é incompetente em razão da matéria.
3º – É por isso passível de inconstitucionalidade a norma constante no D/L 314/2003 de 17 de Dezembro por se encontrar excluída dos Tribunais Judiciais, visto que estamos perante um acto administrativo.


Cumpre apreciar e decidir.



II
Fundamentação

2. Nos presentes autos é submetida à apreciação do Tribunal Constitucional a norma do nº 6 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 314/2003, de 17 de Dezembro, quando interpretada no sentido de competir ao tribunal civil a emissão do mandado judicial para aceder ao local onde se encontrem os animais que devam ser removidos.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 579/95, declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma do artigo 10º, nº 4, do Decreto-Lei nº 317/85, de 2 de Agosto, na parte em que atribui competência ao tribunal judicial da comarca para conhecer do recurso da decisão camarária relativa à remoção da canídeos ou outros animais de companhia, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição.
Nos presentes autos, a relação jurídica em causa tem a mesma natureza (administrativa), tratando‑se de execução judicial de uma decisão administrativa [artigo 4º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro] e igualmente está em causa a competência do tribunal civil para praticar um acto jurisdicional relativo à remoção dos animais (no Acórdão mencionado, tratava‑se da competência para decidir o recurso da decisão camarária de remoção; no presente processo trata‑se da emissão de mandado, a pedido do Presidente da Câmara, para aceder ao local com vista à remoção dos animais).
Em ambos os casos, os diplomas foram emitidos pelo Governo sem autorização parlamentar.
No Acórdão nº 579/95, o Tribunal Constitucional entendeu o seguinte:

4. A questão de constitucionalidade julgada nos acórdãos que justificam o pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, resulta de a decisão camarária de remoção de canídeos e o respectivo recurso poderem surgir como mera forma de dirimir conflitos de vizinhança de natureza civil.
Problema pressuposto pela decisão de inconstitucionalidade é, assim, o da qualificação do acto camarário (a decisão de remoção dos animais) como exercício de função administrativa integrante do poder autárquico. A atribuição de competência aos tribunais de comarca para o recurso da decisão camarária apenas será duvidosa, no plano constitucional, na medida em que o problema anterior for resolvido no sentido da qualificação como acto administrativo da decisão camarária.

5. O Decreto-Lei nº 317/85, ao prever que "as razões de salubridade ou tranquilidade da vizinhança" referidas no artigo 10º são fundamento da decisão camarária de remoção dos animais em causa, integra uma tal decisão no âmbito da defesa da "qualidade de vida do respectivo agregado populacional", que faz parte das atribuições cometidas às câmaras pelo artigo 2º, nº 1, alíneas a) e i), do Decreto-Lei nº 100/84.
A tranquilidade da vizinhança ou a qualidade de vida em que pode interferir a instalação de animais em habitações sem as devidas condições para que não resultem incómodos e perigos para a saúde não é um mero problema de conflito de direitos entre sujeitos privados, mas corresponde antes a uma ordenação geral da vida dos agregados populacionais, a um interesse público que compete às autarquias preservar e promover.
Só para uma concepção liberal historicamente datada, segundo a qual os poderes públicos não englobam entre os seus objectivos a promoção de bens colectivos de interesse geral, nomeadamente a qualidade de vida dos habitantes das povoações, é que situações como as referidas no artigo 10º, nº 4, poderão ser identificadas como meros conflitos de interesses ou direitos entre sujeitos privados.

6. Porém, na ordem jurídica do Estado de direito democrático e social, que sedimentou em direitos sociais que desenvolvem os direitos fundamentais individuais, a relevância autónoma dos conflitos de interesses conexionados com a vizinhança, o sossego e a tranquilidade de vida, coloca-se no plano de uma ordenação geral da vida colectiva destinada a assegurar um nível aceitável de qualidade de vida no espaço físico e no ambiente psicológico de cada indivíduo. É esse mínimo de ordenação que justifica medidas condicionantes do espaço de cada cidadão, em ordem a prevenir riscos para os outros.
Uma tal necessidade de defender e preservar a qualidade de vida e o ambiente dos cidadãos nas relações de vizinhança justifica a subtracção de certas situações a uma pura ponderação de interesses sob a égide do direito privado, cujas coordenadas são a igualdade e a liberdade em contraposição à autoridade e à competência características do direito público (cf. Menezes Cordeiro, Teoria Geral do Direito Civil, 1988, p. 11 e ss.), e a sua inserção no direito público. O facto de as relações de vizinhança serem conexionadas com interesses públicos não implica, aliás, que apenas esteja em causa o interesse público. A doutrina do Direito Administrativo reconhece hoje que a prossecução do interesse público não é o único critério de acção administrativa. Também os direitos subjectivos e os interesses legítimos dos particulares constituem limite e critério de acção administrativa (cf. Freitas do Amaral, Direito Administrativo, II, 1988, p. 80 e ss.).
Estamos, assim, perante o exercício de poderes administrativos de competência das autarquias locais, sendo a decisão de remoção de canídeos acto administrativo, à luz de uma definição analítica, segundo a qual o acto administrativo é um acto jurídico unilateral, orgânica e materialmente administrativo e que versa a produção de efeitos jurídicos sobre uma situação individual num caso concreto (cf. Freitas do Amaral, ob.cit., III, 1989, p. 66 e ss.).

7. O artigo 10º, nº 4, do Decreto-Lei nº 317/85, ao atribuir competência ao tribunal judicial de comarca para julgar o recurso da decisão camarária de remoção de canídeos, vem definir a competência dos tribunais quanto àquela matéria, alterando a repartição de competência entre os tribunais que deriva do sistema geral vigente no ordenamento jurídico. Com efeito, a natureza de acto administrativo da decisão camarária implicaria, nos termos do Decreto‑Lei nº 267/85, de 16 de Julho, que o recurso contencioso de anulação fosse da competência dos tribunais administrativos.
Mas, mesmo que se entenda que a competência dos tribunais administrativos em matérias deste tipo não é imposta pelo artigo 214º da Constituição, questão que não terá de ser analisada pelo Tribunal Constitucional neste caso, não haverá dúvida alguma de que a regulamentação do referido artigo 10º, nº 4, incide sobre a competência material dos tribunais, pois tal norma não aplica, meramente, o sistema geral de repartição de competências vigente.

8. Em consequência de tudo isto, teremos que concluir que o artigo 10º, nº 4, do Decreto-Lei nº 317/85 regula matérias integradas no âmbito da reserva de lei imposta pelo artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição. É entendimento deste Tribunal e perspectiva aceita na doutrina que a reserva de lei integra a competência material dos tribunais (cf. Acórdãos nºs 230/86, 32/87, 25/88, 66/88, 101/88 e 126/88, DR, I série, de 12 de Setembro de 1986, e II série, de 7 de Abril de 1987, e 7 de Maio, 20 de Agosto, 31 de Agosto e 5 de Setembro de 1988, respectivamente, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 670 e ss.).
Desta forma, conclui-se que a norma cujo valor constitucional é questionado - o artigo 10º, nº 4, do Decreto‑Lei nº 317/85 - é organicamente inconstitucional, por estar integrada num Decreto-Lei editado pelo Governo ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição, sem a autorização legislativa do Parlamento que o cumprimento do artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição impõe.


Tais considerações são, com as devidas adaptações, pertinentes nos presentes autos. O pedido do Presidente da Câmara foi referido pelo tribunal a quo à forma processual de uma providência cautelar e, podendo discutir‑se que seja essa a sua natureza e sobre o tipo de intervenção judicial exigível – questão acerca da qual o Tribunal Constitucional não se debruçará – trata‑se, em todo o caso, de uma matéria do âmbito das relações jurídico‑administrativas, a qual é, segundo o Direito vigente, da competência dos tribunais administrativos. Nessa medida, a norma objecto do presente recurso, atribuindo a competência para a emissão do mandado ao tribunal judicial, incide sobre a competência material dos tribunais, já que, como se refere no Acórdão transcrito supra, “não aplica, meramente, o sistema geral de repartição de competências vigente” [cf. artigo 4º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais].
Há, pois, que concluir pela inconstitucionalidade orgânica da norma desaplicada.


III
Decisão

3.
Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide confirmar o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.

Lisboa, 28 de Março de 2007

Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos

8 comentários:

  1. Anónimo disse...

    O Diploma em apreço (DL 314/2003, de 17 de Dezembro) vem aprovar o Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e Outras Zoonoses, cujo principal objectivo é evitar e controlar surtos de raiva e outras doenças animais que possam representar perigo para o homem.

    Ora, a norma objecto de apreciação de constitucional no Acórdão que agora analisamos é o n.º 3 do artigo 6º desse mesmo Diploma, que vem sob a epígrafe “Detenção de cães e gatos” impor que “no caso de criação de obstáculos ou impedimentos à remoção de animais que se encontrem em desrespeito ao previsto no presente artigo, o presidente da câmara municipal pode solicitar a emissão de mandado judicial que lhe permita aceder ao local onde estes se encontram e à sua remoção”.

    Ora, à semelhança do diploma antecedente (no que toca à regulação desta mesma matéria), este número refere que é da competência do tribunal da comarca a resolução deste problema. Ou seja, a questão que aqui se põe é a eventual inadmissibilidade material deste tribunal apreciar uma matéria de natureza administrativa (uma vez que falamos de salubridade nos agregados populacionais e salvaguarda do ambiente – atribuições municipais, por força do artigo 13º, alíneas g) e l), e das freguesias, por força do artigo 14º, alínea h), tudo da Lei nº 159/99, de 14 de Setembro).

    A decisão do presente Acórdão apontou a inconstitucionalidade orgânica (por alteração da competência do tribunal – o DL carecia de uma autorização legislativa nesse sentido, por força da reserva relativa de competência legislativa – artigo 165º, n.º 1, alínea p) da CRP), uma vez que o legislador alterou a competência jurisdicional nesta matéria.

    Ora, atendendo à definição de acto administrativo que recordamos do Prof. Dr. Freitas do Amaral, este será todo o acto jurídico unilateral, orgânica e materialmente administrativo e que versa a produção de efeitos jurídicos sobre uma situação individual num caso concreto. Como vemos, no caso em apreço, não sobram dúvidas de que estamos perante um verdadeiro acto jurídico unilateral.

    Portanto, se entrar em mais considerações sobre os argumentos apresentados na fiscalização constitucional, concordamos com a decisão do Tribunal Constitucional nesta matéria (bem como no Acórdão de 15 de Março de 1995, que apreciava o mesmo problema quanto ao artigo 10º, n. 4 do DL 317/85), uma vez que não só não estamos perante meras situações jurídicas privadas em confronto (aí se justificaria o recurso a tribunais de comarca) e, mesmo que fosse esse o caso, seria sempre indispensável a concessão prévia de uma autorização legislativa, nos termos acima referidos.


    [Maria Inês P. Ramalho, Sub. 4]  

  2. Subturma 4 disse...

    Tendo em conta que o DL 314/2003 tem em vista a manutenção do estatuto de indemnidade do país relativamente à raiva e a outras zoonoses, estabelecendo regras relativas à posse e detenção (…) de animais susceptíveis à raiva em território nacional (art. 1º), defende um direito fundamental dos cidadãos à saúde pública (art. 64º/1 CRP) atribuindo às câmaras municipais a função de notificar “o detentor para retirar os animais para o canil ou gatil municipais no prazo estabelecido (…), caso o detentor não opte por outro destino que reúna as condições estabelecidas pelo presente diploma” (art. 3º/5). As regras presentes neste diploma têm a ratio de assegurar o interesse público de um mínimo de ordenação geral da vida dos agregados populacionais, atribuindo competência às autarquias de o preservar e promover, e por isso devemos ver a decisão da câmara municipal de retirar animais que se encontrem em desrespeito com as regras DL 135/2003 como um acto administrativo, já que há efectivamente um comando autárquico que prossegue e realiza um interesse público, com efeitos jurídicos sobre uma situação individual e num caso concreto. Assim, não podemos atribuir competência aos tribunais judiciais para dirimir este litígio, já que esta matéria é do foro administrativo, caindo no âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos pelo art. 4º/1/l).

    A acção foi intentada num tribunal judicial pela aplicação do art. 3º/6 do DL 314/2003, todavia o artigo foi mal interpretado no sentido de atribuir aos tribunais a competência da emissão de mandado judicial que permita aceder ao local onde se encontrem os animais quando haja obstáculos ou impedimentos à remoção dos mesmos. As regras legais devem sempre ser interpretadas em conformidade à constituição e assim sendo, essa norma deveria ser interpretada apenas no sentido de ser necessária intervenção judicial para aceder ao local onde haja o obstáculo ou o impedimento e não no sentido de atribuir essa competência aos tribunais judiciais. Afinal, a finalidade do art. 3º/6 é apenas a de que a compressão de certos direitos fundamentais individuais em função de um interesse público passe no crivo dos tribunais e não necessariamente pelos tribunais judiciais.

    Assim, discordo da decisão do Tribunal Constitucional que declarou simplesmente a norma organicamente inconstitucional por violação do art. 165/1/p). O tribunal deveria ter recorrido ao art. 80º/3 da Lei do Tribunal Constitucional sobre sentenças interpretativas, julgando a norma inconstitucional quando interpretada no sentido de atribuir competência aos tribunais judiciais e não violadora da Constituição quando interpretada no sentido de apenas ordenar a necessidade de mandado proferido por um tribunal para o acesso ao local onde os animais se encontrem e à sua remoção.

    Concluindo, os autos baixariam ao tribunal de onde proveio o recurso para este reformular a sua decisão em conformidade com a posição defendida. A infracção das regras de competência em razão da matéria comporta incompetência absoluta do tribunal (101º CPC) tendo os efeitos elencados no art. 105º CPC.


    Cátia Isidro Bento, nº 14707  

  3. Anónimo disse...

    Neste Acórdão do Tribunal Constitucional, questiona-se de quem será a competência para emitir um mandato, com o objectivo de proceder à remoção de animais em número superior ao legal.
    De acordo com o art.3º/6 do DL nº314/2003 (programa nacional de luta e vigilância contra a raiva animal e regulação da detenção de animais a ela susceptíveis), quem teria competência para apreciar tal pedido seriam os tribunais judiciais, pelo facto deste tipo de práticas envolver a aplicação de medidas de coerção.
    No entanto, verifica-se que não é este o entendimento seguido pelo Tribunal Constitucional. Ora, segundo um anterior acórdão do Tribunal Constitucional estes actos teriam a natureza de actos administrativos e integrar-se-iam no exercício da função administrativa integrante do poder autárquico.
    No caso concreto em discussão, é defendido que estão em causa a salvaguarda do ambiente e a salubridade dos agregados populacionais, que à luz da Lei nº159/99, de 14 de Setembro são uma atribuição dos municípios, realizada em prol do interesse público.
    Neste tipo de situação, onde há instalação de animais em habitações sem as devidas condições, faz sentido que sejam as autarquias a actuar. Isto porque, como é dito no acórdão em apreço, não se trata de um mero conflito de direitos entre sujeitos privados, emergem outros interesses de carácter público, como sendo a qualidade de vida ou a tranquilidade da vizinhança.
    O Tribunal Constitucional vem concluir que não se aplicaria o no 3º/6 do DL nº314/2003 e declarou incompetente, em razão da matéria, o tribunal judicial.
    Concluindo, a decisão do Tribunal Constitucional veio, de alguma forma, delimitar os interesses que estavam em presença e partindo daqui definir quem poderia emitir os mandatos para efectuar a remoção de animais detidos em excesso ou sem condições de salubridade. E como se pretendia aqui a realização prioritária do interesse público na área da saúde e da qualidade de vida das populações parece-me razoável que fossem os tribunais administrativos apreciar esta matéria, de acordo do DL nº267/85, de 16 de Julho.

    Tania Vieira, nº14508  

  4. Anónimo disse...

    O presente comentário refere-se à análise conjugada do Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) nº 229/2007 com o Decreto-lei (DL) 314/2003 de 17 de Dezembro. Por uma questão de organização do comentário, vou primeiramente proceder a uma descrição sumária do acórdão mencionado para, de seguida, apreciar o seu conteúdo, bem como o do DL 314/2003, de modo a concluir a minha análise pela concordância – ou não – com a decisão emitida pelo TC.

    O acórdão do TC em apreço resulta de um pedido do presidente da câmara municipal (requerente) efectuado junto do tribunal cível de Lisboa no sentido da emissão de mandato judicial que permitisse proceder à remoção de animais ao abrigo do art 3/6 DL 314/2003. O art 3/6 DL 314/2003 diz-nos que é da competência do tribunal civil emitir mandato judicial para aceder ao local onde se encontram os animais que devam ser removidos, o que significa que este preceito dispõe expressamente que são competentes os tribunais judiciais para a verificação da legalidade do acto administrativo, pressuposto este da emissão do mandato requerido. A questão que se coloca é se esta norma não é violadora da Constituição da República Portuguesa (CRP), nomeadamente se estamos perante uma inconstitucionalidade orgânica, na medida em que nos termos da lei – CRP e ETAF – seriam, em princípio, os tribunais administrativos os foros competentes para a emissão de um mandato com este âmbito e conteúdo. A alteração da regra geral de repartição de competência material inclui-se na matéria de reserva de lei da Assembleia da República (AR) e, no nosso caso, o Governo emitiu o DL 314/2003 sem qualquer autorização legislativa. Como tal, o TC acaba por concluir pela inconstitucionalidade orgânica do art 3/6 DL 314/2003, apresentando uma argumentação lógica cujos principais fundamentos assentaram:
    1) Qualificação do acto camarário como acto administrativo, pois entende que a tranquilidade da vizinhança ou a qualidade de vida em que pode interferir a existência de animais perigosos para a saúde pública não se reduz a um simples problema de “conflito de direitos entre sujeitos privados”, correspondendo sim a uma ordenação geral da vida dos agregados populacionais e a um interesse público de competência de preservação e promoção das autarquias locais, de acordo com o art 2/1 a) e i) do DL 100/84.
    2) O art 3/6 DL 314/2003 vem definir a competência dos tribunais quanto à matéria da remoção dos canídeos, alterando a repartição de competência entre os tribunais que resulta do sistema geral vigente no nosso ordenamento jurídico, pois, sendo o acto administrativo, a emissão do mandato seria da competência dos tribunais administrativos.
    3) Como tal, tendo em conta que o art 3/6 do diploma em apreço incide sobre a competência material dos tribunais, enquadra-se na reserva de lei imposta pelo art 168/1 q) CRP. Deste modo, aquela norma não pode deixar de ser declarada organicamente inconstitucional pois o DL no qual está integrada foi emitido pelo Governo sem prévia e obrigatória autorização legislativa da AR.
    4) Além disso, o TC invoca um “precedente” semelhante, nomeadamente o Acórdão do TC nº 579/95, no qual o TC declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma do art 10/4 do DL 317/85 de 2 de Agosto, na parte em que atribui competência ao tribunal judicial da comarca para conhecer do recurso da decisão camarária relativa à remoção de canídeos ou outros animais de companhia, por violação do art 168/1 q) CRP. Ou seja, tal como no nosso acórdão, temos a execução judicial de uma decisão camarária cuja relação jurídica apresenta natureza administrativa e, ambos os casos, os diplomas de cujas normas é suscitada a inconstitucionalidade – DL 317/85 e DL 314/2003 – foram emitidos pelo Governo sem autorização parlamentar.

    O DL 314/2003 de 17 de Dezembro tem como objecto a aprovação do Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e outras zoonoses com o intuito de proceder a um estudo epidemiológico e a um combate à raiva e outras zoonoses, estabelecendo, mais especificamente, as regras relativas à posse, detenção, comércio, exposições e entrada de animais susceptíveis à raiva em território nacional.
    Temos, portanto, claramente um regime que visa a protecção das pessoas me detrimento (aparente) dos animais pois a raiva e as outras zoonoses conexas são patologias de alto risco, susceptíveis de serem transmissíveis ao ser humano por animais domésticos.
    O art 3º deste diploma – que é o que nos interessa destacar para efeitos do presente acórdão – refere-se às regras de detenção de cães e gatos, prevendo não o nº legal máximo de alojamento destes animais em função do tipo de prédio, mas também as condições mínimas em que estes animais devem ser acomodados. Assim sendo, sou levada a retirar deste preceito uma “dupla protecção”: embora resulte imediatamente do preceito a protecção da saúde das pessoas detentoras ou em contacto com animais, ao condicionar o nº destes à “existência de um mínimo de boas condições do mesmo e ausência de riscos higie-sanitários relativamente à conspurcação ambiental e doenças transmissíveis ao homem”, julgo que mediatamente também se está a tutelar os animais pois acaba por se assegurar um mínimo de condições razoáveis para o seu alojamento. No entanto, apesar desta interpretação que pode ser retirada de forma mediata deste diploma, não se pode ignorar que o seu cunho principal reside indiscutivelmente na protecção da qualidade de vida e salubridade (conjunto das condições favoráveis à saúde pública) do agregado populacional em detrimento da tutela dos animais. Estas condições do art 3º, bem como as restantes do DL em causa, é óbvio que conexamente implicam um tratamento menos negligente dos animais domésticos, mas o que se tem em vista é, sobretudo, a tutela dos seus detentores “lato senso”. Até porque não se trata de patologias “inertes”, mas antes altamente contagiosas, tanto entre animais, como de animais para pessoas e entre pessoas e, portanto, estamos claramente perante um caso de saúde pública que em 100% dos casos conduz à morte dos seus portadores.
    Em caso de incumprimento destes condicionalismos legais, nomeadamente dos contidos no art 3º, nºs 1 a 4 do DL 314/2003, as câmaras municipais notificam o detentor para proceder à remoção dos animais (nº5) e, caso este crie obstáculos ou impedimentos, o presidente da câmara municipal pode solicitar a emissão de mandato judicial que lhe permita aceder ao local onde os animais se encontram e à sua remoção (nº6). Não podemos, todavia, esquecer a possibilidade de aplicação concomitante de coimas (art 14º) e sanções acessórias (art 15º) em caso de incumprimento destas regras legais.

    No fundo, o DL é uma decorrência da protecção da saúde pública e, como tal, enquanto salvaguarda do ambiente e salubridade dos agregados populacionais, é uma atribuição dos municípios (art 14/1 h) da Lei 159/99 de 14 de Setembro), realizada em prol do interesse público. Os actos a praticar neste âmbito serão, portanto, qualificáveis como actos de gestão pública a realizar por uma entidade pública – logo, actos administrativos -, o que significa que será da competência dos tribunais administrativos o seu controlo, tal como resulta do art 4/1 b) ETAF.
    O art 3/6, cuja inconstitucionalidade orgânica é suscitada, prevê pelo contrário a atribuição de competência em razão da matéria aos tribunais civis para emissão de mandato judicial que permita o acesso ao local de alojamento dos animais em ordem à sua remoção, o que é evidentemente violador do regime geral de repartição de competência dos tribunais.
    Já justificámos a natureza administrativa das normas do DL 314/2003, na medida em que visam a realização do interesse público na área da saúde e qualidade de vida das populações, o que significa que não será da competência dos tribunais judiciais a emissão do mandato a que se reporta do art 3/6. Esta modificação do regime de repartição de competências é matéria reservada da AR – reserva relativa de competência da AR – pois enquadra-se no art 168/1 q) CRP e, atendendo ao facto de que o Governo emitiu o DL 314/2003 sem a prévia autorização legislativa para o efeito, isto é, para “sanar” a inconstitucionalidade do art 3/6, nesse caso, não poderemos chegar a conclusão diferente do TC, ou mesmo do tribunal cível de Lisboa: o art 3/6 viola o art 4º ETAF e, como se trata de matéria da reserva relativa parlamentar e o Governo não solicitou qualquer autorização legislativa daquele órgão para aprovar o DL 314/2003, o art 3/6 considera-se inconstitucional – inconstitucionalidade orgânica – por violação do art 168/1 q) CRP. Assim sendo, o disposto no art 3/6 “padecerá” de nulidade nos termos gerais e o tribunal cível de Lisboa tem toda a razão em se ter considerado incompetente em razão da matéria para emitir o mandato judicial solicitado pelo presidente da câmara municipal ao abrigo ao art 3/6 do DL 314/2003.

    Somente duas notas finais:
    NOTA I: Quanto à natureza administrativa do acto camarário, segue-se a doutrina invocada pelo TC no Acórdão 229/2007, nomeadamente o Professor Menezes Cordeiro que entende que a “necessidade de defender e preservar a qualidade de vida e o ambiente dos cidadãos nas relações de vizinhança justifica a subtracção de certas situações a uma pura ponderação de interesses sob a égide do direito privado (…) e a sua inserção no direito público”, in Menezes Cordeiro; Teoria Geral do Direito Civil; bem como o Professor Freitas do Amaral para quem “os direitos subjectivos e os interesses legítimos dos particulares constituem limite e critério da acção administrativa”, in Freitas do Amaral; Direito Administrativo II.

    NOTA II: No que concerne à possibilidade de interpretação conforme à CRP do art 3/6 do DL 314/2003 suscitada pelo MP nas suas alegações, no sentido de caber à jurisdição administrativa a competência para a emissão do mandato judicial previsto em detrimento da declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade orgânica daquele preceito, deve-se dizer que interpretar conforme à CRP não significa alterar o conteúdo da lei. Se assim fosse, tratar-se-ia de uma intervenção extremamente drástica na esfera de competência do legislador – mais grave ainda do que a declaração de inconstitucionalidade. Para haver interpretação conforme à CRP, é imprescindível a existência de um espaço de decisão, isto é, que uma determinada questão comporte e aceite várias propostas alternativas coo admissíveis – o que não parece suceder no caso do art 3/6 DL 314/2003 que se refere muito claramente à competência dos tribunais judiciais. Esta norma é inequivocamente inconstitucional por contrária à CRP e, por conseguinte, não deverá admitir-se interpretação conforme à Lei Fundamental, sob pena de, em última análise, se “abrir porta” a uma nova conformação da matéria elaborada pelo legislador. Assim sendo, conclui-se que a melhor opção, “in casu”, é efectivamente a declaração de inconstitucionalidade orgânica do art 3/6 do DL 314/2003, em detrimento de uma interpretação conforme à CRP.

    Marina Guerreiro, nº 14708 (sub3)  

  5. Anónimo disse...

    O Acórdão do Tribunal Constitucional nº 229/2007 versa sobre a inconstitucionalidade ou constitucionalidade orgânica do artigo 3º número 6 do Decreto-Lei nº 314/2003, que aprova o Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e Outras Zoonoses. Assim, refere o artigo 3º número 6 do Decreto-Lei em causa que “no caso de criação de obstáculos ou impedimentos à remoção de animais que se encontrem em desrespeito ao previsto no presente artigo, o presidente da câmara municipal pode solicitar a emissão de mandado judicial que lhe permita aceder ao local onde estes se encontram e à sua remoção”. Cumpre questionar, uma vez tratando-se de uma matéria que cabe no exercício de poderes administrativos de competência das autarquias locais, se tal situação não deveria ser da competência dos Tribunais Administrativos?
    O requerente, no caso em concreto, pretende que o tribunal, ao abrigo do artigo 3º número 6 do Decreto-Lei nº 314/2003, emita um mandado que lhe permita proceder à remoção de animais em número superior ao legal. Contudo, atendendo às alegações feitas pelo Ministério Púlico, este alega nomeadamente que “as normas incluídas no Decreto-Lei nº 314/2003 de 17 de Dezembro, configuram-se como tendo natureza administrativa , já que visam a realização prioritária do interesse público na área da saúde e qualidade da vida das populações”. Acrescenta ainda que “cabe presentemente, no âmbito da jurísdição administrativa a tutela de direitos fundamentais do particular, no âmbito de uma relação jurídico-administrativa, bem como da fiscalização da legalidade de quaisquer actos jurídicos emanados pela Administração no exercício da função administrativa (artigo 4º, n° 1, alíneas a) e b) do ETAF) – cabendo processualmente no âmbito dos processos cautelares, regulados no CPTA, a obtenção de autorização jurisdicional para executar o referido acto administrativo”. Concluindo que “deve a norma desaplicada na decisão recorrida ser interpretada em conformidade com a Constituição, de modo a caber à jurisdição administrativa a competência para a emissão do «mandado judicial» previsto no n° 6 do artigo 3° do Decreto Lei n° 314/03”.
    O Tribunal Constitucional declarou inconstitucional a norma do artigo 3º número 6 do Decreto-Lei nº 314/2003, bem como o mesmo Tribunal, no Acórdão nº 579/95, já havia declarado com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma do artigo 10º número 4, uma vez que também nesta, era atribuída competência ao tribunal judicial da comarca para “conhecer do recurso da decisão camarária relativa à remoção de canídeos ou outros animais de companhia”. Neste Acórdão, o Tribunal confirmou que se tratava de matérias que não cabiam na jurisdição do tribunal judicial da comarca, dado que se tratava de exercícios de poderes administrativos de competência das autarquias locais, pelo que a remoção de canídeos é um acto administrativo, não tendo aquele tribunal competência para tomar tal decisão. O Tribunal Constitucional considerou que a situação jurídica agora exposta se aplica ao caso em questão, com as necessárias adaptações.
    Efectivamente, cumpre concordar com a decisão tomada pelo Tribunal Constitucional no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 3º número 6 do Decreto-Lei nº 314/2003, uma vez que não se entende como pode um tribunal judicial ser competente para emitir um “mandado judicial” relativamente a uma matéria que não cabe no seu âmbito jurisdicional. Atente-se à doutrina defendida pelo Professor Freitas do Amaral de que “o exercício de poderes administrativos de competência das autarquias locais, sendo a decisão de remoção de canídeos acto administrativo, à luz de uma definição analítica, segundo a qual o acto administrativo é um acto jurídico unilateral, orgânica e materialmente administrativo e que versa a produção de efeitos jurídicos sobre uma situação individual num caso concreto”. O que está em causa não é um problema de conflito de direitos entre sujeitos privados, mas sim um interesse público que por sua vez, compete às autarquias locais preservar e promover. Assim, mais uma vez se conclui que se está perante um acto de natureza administrativa pelo que tal deveria ser da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais.


    (Paula Cristina Morais, subturma 1)  

  6. catarina vasco disse...

    Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 229/2007
    Processo nº 1065/2006 - 2ª Secção
    Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma

    O Tribunal Constitucional, através do Acórdão supra referido, julgou inconstitucional a norma do artigo 3º, nº 6 do Decreto-lei nº 314/2003, de 17 de Dezembro, quando interpretada no sentido de competir ao Tribunal Civil a emissão do mandato judicial para aceder ao local onde se encontram os animais que devam ser removidos.

    Vejamos as razões desta decisão:

    Este diploma que aprovou o “Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e Outras Zoonoses”, estipula, no seu n.º 3 do artigo 6º, sob a epígrafe “Detenção de cães e gatos” que “no caso de criação de obstáculos ou impedimentos à remoção de animais que se encontrem em desrespeito ao previsto no presente artigo, o presidente da câmara municipal pode solicitar a emissão de mandado judicial que lhe permita aceder ao local onde estes se encontram e à sua remoção”.

    E, na linha do diploma que o antecedeu remete para o tribunal da comarca a competência para a emissão do mandato judicial, para acesso ao local e remoção dos animais, a solicitação do respectivo Presidente de Câmara.

    Questiona-se a natureza da matéria e do acto em apreciação: Administrativa ou Civil.

    Da resposta dada a questão resultaria a decisão sobre a eventual inconstitucionalidade ou não da citada norma.

    No presente processo, trata-se da emissão de mandado, a pedido do Presidente da Câmara, para aceder ao local com vista à remoção dos animais.

    O Tribunal Constitucional entendeu, e bem, que “…a relação jurídica em causa tem a mesma natureza (administrativa), tratando se de execução judicial de uma decisão administrativa [artigo 4º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro] e igualmente está em causa a competência do tribunal civil para praticar um acto jurisdicional relativo à remoção dos animais.

    Ora, já em anterior Acórdão nº 579/95, o Tribunal Constitucional, tinha declarado com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma do artigo 10º, nº 4, do Decreto-Lei nº 317/85, de 2 de Agosto, na parte em que atribuía competência ao tribunal judicial da comarca para conhecer do recurso da decisão camarária relativa à remoção da canídeos ou outros animais de companhia, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição.

    Ou seja, concluíu o Tribunal, que a norma cujo valor constitucional era questionado - o artigo 10º, nº 4, do Decreto Lei nº 317/85 - era organicamente inconstitucional, “por estar integrada num Decreto-Lei editado pelo Governo ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição, sem a autorização legislativa do Parlamento que o cumprimento do artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição impõe.”

    De acordo com a Jurisprudência já assente por este Tribunal e com as devidas adaptações, entendeu o Tribunal Constitucional que o caso em apreço tratava” de uma matéria do âmbito das relações jurídico administrativas, a qual é, segundo o Direito vigente, da competência dos tribunais administrativos. Nessa medida, a norma objecto do presente recurso, atribuindo a competência para a emissão do mandado ao tribunal judicial, incide sobre a competência material dos tribunais, já que, como se refere no Acórdão transcrito supra, “não aplica, meramente, o sistema geral de repartição de competências vigente” [cf. artigo 4º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais] ”

    Decidiu, assim, e bem, o Tribunal concluir pela inconstitucionalidade orgânica da norma desaplicada e confirmar o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.  

  7. catarina vasco disse...

    Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 229/2007
    Processo nº 1065/2006 - 2ª Secção
    Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma

    O Tribunal Constitucional, através do Acórdão supra referido, julgou inconstitucional a norma do artigo 3º, nº 6 do Decreto-lei nº 314/2003, de 17 de Dezembro, quando interpretada no sentido de competir ao Tribunal Civil a emissão do mandato judicial para aceder ao local onde se encontram os animais que devam ser removidos.

    Vejamos as razões desta decisão:

    Este diploma que aprovou o “Programa Nacional de Luta e Vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e Outras Zoonoses”, estipula, no seu n.º 3 do artigo 6º, sob a epígrafe “Detenção de cães e gatos” que “no caso de criação de obstáculos ou impedimentos à remoção de animais que se encontrem em desrespeito ao previsto no presente artigo, o presidente da câmara municipal pode solicitar a emissão de mandado judicial que lhe permita aceder ao local onde estes se encontram e à sua remoção”.

    E, na linha do diploma que o antecedeu remete para o tribunal da comarca a competência para a emissão do mandato judicial, para acesso ao local e remoção dos animais, a solicitação do respectivo Presidente de Câmara.

    Questiona-se a natureza da matéria e do acto em apreciação: Administrativa ou Civil.

    Da resposta dada a questão resultaria a decisão sobre a eventual inconstitucionalidade ou não da citada norma.

    No presente processo, trata se da emissão de mandado, a pedido do Presidente da Câmara, para aceder ao local com vista à remoção dos animais.

    O Tribunal Constitucional entendeu, e bem, que “…a relação jurídica em causa tem a mesma natureza (administrativa), tratando se de execução judicial de uma decisão administrativa [artigo 4º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro] e igualmente está em causa a competência do tribunal civil para praticar um acto jurisdicional relativo à remoção dos animais.

    Ora, já em anterior Acórdão nº 579/95, o Tribunal Constitucional, tinha declarado com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma do artigo 10º, nº 4, do Decreto-Lei nº 317/85, de 2 de Agosto, na parte em que atribuía competência ao tribunal judicial da comarca para conhecer do recurso da decisão camarária relativa à remoção da canídeos ou outros animais de companhia, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição.

    Ou seja, concluíu o Tribunal, que a norma cujo valor constitucional era questionado - o artigo 10º, nº 4, do Decreto Lei nº 317/85 - era organicamente inconstitucional, “por estar integrada num Decreto-Lei editado pelo Governo ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição, sem a autorização legislativa do Parlamento que o cumprimento do artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição impõe.”

    De acordo com a Jurisprudência já assente por este Tribunal e com as devidas adaptações, entendeu o Tribunal Constitucional que o caso em apreço tratava” de uma matéria do âmbito das relações jurídico administrativas, a qual é, segundo o Direito vigente, da competência dos tribunais administrativos.

    Nessa medida, a norma objecto do presente recurso, atribuindo a competência para a emissão do mandado ao tribunal judicial, incide sobre a competência material dos tribunais, já que, como se refere no Acórdão transcrito supra, “não aplica, meramente, o sistema geral de repartição de competências vigente” [cf. artigo 4º, nº 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais] ”

    Decidiu, assim, e bem, o Tribunal concluir pela inconstitucionalidade orgânica da norma desaplicada e confirmar o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.

    Catarina Vasco , nº 14581, subturma 5  

  8. Subturma 4 disse...

    Para analisarmos o presente acórdão, temos que fazer também a analise do DL 314/3003 de 17 de Dezembro, que logo no seu art. 1º nos vem dizer que vem aprovar o programa nacional de luta e vigilância Epidemiológica da Raiva Animal e Outras Zoonoses, que pretende através de acções médicas e sanitárias manter o país afastado de doenças que possam ser transmitidas aos indivíduos através de animais, dentro dessas destaca-se a raiva.

    No acórdão é importante responder à questão de quem será competente para emitir um mandato, tendo em vista a remoção de animais em número superior ao legal, ao que o artigo 3º nº6 nos diz que em caso de incumprimento dos números 1 a 4 do art.3º cabe as câmaras municipais notificar o detentor para proceder à remoção dos animais (procedimento previsto no nº5) e, caso este crie obstáculos ou impedimentos aí o presidente da câmara municipal poderá então solicitar a emissão de mandato judicial que lhe permita aceder ao local onde os animais se encontram e à sua remoção (nº6). De acordo com este artigo cabe ao tribunal de comarca resolver esta situação, sendo a este que cabe a emissão de mandato judicial. Contudo na Lei nº 159/99, de 14 de Setembro, a salvaguarda do ambiente e salubridade dos agregados populacionais, é uma atribuição dos municípios (art. 13º g) e l); e art. 14/1º h) que é realizada em prol da saúde pública. Sendo assim um acto de gestão pública por se compreender no exercício de um poder público, integrando a realização de uma função pública da pessoa colectiva, deveria a apreciação do pedido de remoção dos animais caber aos Tribunais Administrativos (art.4º nº1 a) do Estatuto dos tribunais administrativos e fiscais).

    Não estará o art.3º nº6 em violação da Constituição da Republica Portuguesa, no sentido em que para esta, quem seria competente seriam os tribunais administrativos? Poderá então um tribunal judicial apreciar matérias de cariz administrativo? A decisão do presente acórdão foi a de declarar que não se aplicava o art.3º nº6 do DL e consequentemente considerar o tribunal judicial incompetente em razão da matéria (inconstitucionalidade orgânica do art.3º nº6 pois a alteração da regra geral de repartição de competência material inclui-se na matéria de reserva de lei da Assembleia da República e, no nosso caso, o Governo emitiu o DL 314/2003 sem qualquer autorização legislativa).

    Tendo em conta o que já foi referido, e por se tratar de um acto de natureza administrativa, que pela aplicação da vigente lei, se deve considerar da competência dos tribunais administrativos e fiscais, considero que o TC esteve bem ao pronunciar-se pela inconstitucionalidade orgânica da norma desaplicada, neste caso do art.3º nº6.

    Diana Augusto, nº 14592  


 

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