Comentário ao Acórdão do STJ de 19.10.2004

A temática deste acordão prende-se com os chamados "direitos dos animais", mais concretamente, com a licitude ou ilicitude da actividade de tiro com armas de caça aos pombos em voo. De base a esta análise serviu o comentário de ANDRÉ DIAS PEREIRA, publicado nos Cadernos de Direito Privado nº12 de Outubro/Dezembro de 2005.
Como ponto de partida podemos referir que o STJ neste caso, decidiu que :"[...] a prática desportiva de tiro ao voo de pombos não se enquadra na proibição a que se reporta o proémio e o n.º1 do art.º 1.º,nem o seu n.º 3, alínea e), da Lei n.º 92/95, de 12/9, pelo que não é proibida no nosso ordenamento jurídico".
A questão que aqui se coloca, é precisamente, a de saber de a actividade de tiro aos pombos está ou não abrangida pela proibição constante da referida Lei que, no seu art.º 1º, encerra as medidas gerais de protecção, contendo no seu n.º1, uma cláusula geral de proibição de violência injustificada contra os animais. Para melhor se perceber o alcance do problema, devemos ter em conta a ratio legis do preceito em causa, que aparece no no panorama legislativo português como fulcral para a protecção dos animais, encerrando "[...] a ideia de os homens, que não podem prescindir da existência dos animais, os não devem torturar gratuitamente e deverem reduzir, até onde for possível, o seu sofrimento, mas tendo em atenção realidade cultural portuguesa.", ou seja, "o fim da lei é proteger os animais de violências cruéis ou desumanas e gratuitas, para as quais não existe justificação ou tradição cultural bastante, isto é, no confronto de meios e fins desenvolvidos em função do Homem."
Pode dizer-se que deste modo se procura um equílibrio ou , se se preferir, uma conciliação entre dois valores constitucionalmente consagrados: o Ambiente, na sua vertente objectiva e subjectiva, plasmado no art.9º, alíneas d) e e), e no art.66º,englobando a protecção dos animais; e por outro lado a presevação do Património Cultural Português, presente no art.º 9º, alínea d), e no art.º 78º, alínea c). Da ponderação destes dois valores, surgem desvios à Protecção dos animais, quando o Legislador dá primazia a "antigas tradições da cultura portuguesa", como acontece no caso da arte equestre ,da caça e das touradas ( incluindo as touradas de morte!!!) como resulta dos art.º 1º, n.º3, alíneas b) e f) , bem como, do art.º 3º,nº4 da Lei n.º92/95. Outras excepções de assinalar são a pesca desportiva, regulada no DL. n.º246, de 29/9 e as experiências científicas de comprovada necessidade, previstas no art.º1, n.º3, alínea e) da Lei 92/95.
Quanto à influência das tradições culturais no regime jurídico de protecção dos animais, um dos argumentos utilizado pelos recorridos no Acordáo em análise, cumpre tecer mais algumas palavras; para ANDRÉ DIAS PEREIRA: "Este argumento é também improcedente. Em primeiro lugar porque os usos só são fonte de direito quando a lei o determine(art.3º do CC).E neste caso, claramente , a lei só quis excepcionar algumas tradições culturais ( arte equestre , tourada e caça)", continua o autor mais adiante," Nem se argumente com a existência de um costume contra-legem derrogatório da proibição geral da Lei.º 92/95 para a prática de tiros aos pombos[...] a grande maioria dos tribunais de 1.ª instância proibia essas práticas[...]". Esta orientação jurisprudencial pode ser encontrada no Acórdão da Relação de Guimarães de 29/10/2003, que defende uma perspectiva actualista.
Contudo o sentido da decisão do STJ no caso em apreço surge como um seguimento da sua anterior jurisprudência, nomeadamente nos acs. de 13/12/2000 onde se pode ler: " O tiro aos pombos ou tiro ao voo constitui uma modalidade desportiva que assume uma grande tradição", ou no de 7/6/2001 :" A defesa do patimónio cultural constitucionalmente tutelada não é incompatível com a organização dessas provas", ou expressamente no ac. de 3/10/2002 :" A Lei n.º 92/95 (protecção dos animais) não quis proibir as provas desportivas de tiro aos pombos[...]Será sempre de admitir, em abstracto, a modificação prospectiva de um tal quadro legal, mas trata-se essa de uma questão de política legislativa, à qual os tribunais são, em princípio, alheios."
Independentemente da consagração do tiro aos pombos como tradição cultural, capaz de integrar as excepções ao regime de protecção dos animais por analogia, convém ter como assente que, e concordando com a jurisprudência do STJ, cabe ao Legislador resolver esta questão de modo expresso, pois nem o elemento histórico, nem o elemento sistemático nos permitem descortinar qual o sentido correcto a seguir pela jurisprudência, caíndo-se numa apreciação casuística, que dependerá, ao que parece, da "sensibilidade" do tribunal para esta questão, pois tanto se pode entender que a interpretação correcta consiste em incluir esta prática na cláusula geral de proibição do art.º1,n.º1 da Lei 92/95,ou que, pelo contrário, resulta uma identidade de argumentos que permite equiparar o tiro aos pombos às excepções da tourada, arte equestre,caça e pesca desportiva.
Na minha modesta opinião, o paradigma desta questão parece estar um pouco deslocado, pois, ao invés de se tentar descortinar que tradições culturais são susceptíveis de sobrepôr à protecção dos direitos dos animais, seria mais interessante averiguar se se justifica de todo uma renúncia a esta protecção em prol da preservação de alguma destas tradições, tendo em conta as alterações ideológicas registadas na Sociedade, fruto do despertar duma "consciência ambiental"; em primeiro lugar, não resulta claro qual o critério para se considerar relevante estas tradições, pois, se no caso da tourada se utiliza um critério temporal, ou seja, a manutenção da tradição por mais de 50 anos (art.º3º, nº4 da Lei 92/95), na fundamentação do Acórdão refere-se apenas que se trata de "uma modalidade desportiva com tradição e relevância em Portugal, conforme resulta, alé do mais, designadamente do número de clubes existentes em Portugal e , de algum modo, de o Governo ter confiado a uma federação desportiva o seu fomento, regulação e disciplina.", ao que ANDRÉ DIAS PEREIRA contrapõe "é líquido não se admitir, em Portugal, qualquer tradição no tiro aos pombos, sendo até uma actividade restrita, sob o ponto de vista da sua adesão social", citando BACELAR GOUVEIA, o que parece apontar para um critério de adesão social, restando a dúvida se é preciso que a tradição dure por certo período de tempo(sem se saber qual será) ou que seja praticada por muitas pessoas(sem saber quantas);em segundo lugar, a claúsula geral de proibição constante do art.º1º,n.º1 assume um caractér meramente "ideológico",pois a mesma Lei que proíbe a violência contra animais, consagra excepções que admitem a própria morte do animal para fins lúdicos,apoiadas em tradições populares! Deste modo, pode concluir-se que quanto mais tempo durar uma violação atroz dos direitos dos animais mais provavelmente será consagrado o seu caractér excepcional, mesmo que já não se adeque à evolução das mentalidades, ou num plano jurídico, ao direito fundamental ao Ambiente, que se repercute em todos nós.
Talvez possa clarificar esta ideia com um exemplo: imagine-se que daqui a 50 anos se chegava à conclusão que as lutas de cães se tinham tornado uma tradição(através de costume contra-legem) nos bairros suburbanos de Portugal, com elevada adesão social. Quid Juris?
Com isto apenas se pretende demonstrar que o conflito entre os dois interesses em jogo, Património Cultural e Ambiente, deve ser resolvido de forma equilibrada e ponderada,não cedendo por completo nem a um, nem a outro, sob pena de se chegar a resultados contraditórios do ponto de vista axiológico, pois ,voltando aos "pombos", se se chegasse à conclusão que, indubitávelmente, se tratava de uma tradição, já era relegado para segundo plano, o nivél de tortura infligido aos animais, como acontece com os touros, podendo inclusivamente, matá-los, se fosse de acordo com a mesma tradição!!!
Depois destas considerações, torna-se imperioso atender a mais alguns argumentos presentes no Acórdão em análise, que suscitam questões igualmente interessantes, tendo sido a problemática da influência da cultura na protecção dos animais, especialmente enfatisada.
Uma dessas questões diz respeito à possibilidade de "direitos subjectivos dos animais"; na linha da orientação jurisprudencial do STJ, e da concepção dominante, "os animais não são titulares de direitos, antes as pessoas têm deveres para com eles", ou seja "os animais são objecto de protecção do direito e não «sujeitos de direitos»". Parece que semelhante conclusão decorreria de um mero exercício de lógica, pois de outro modo, de que serviria reconhecer direitos subjectivos insusceptiveis de exercício pelo seu titular? Segundo o Prof.MENEZES CORDEIRO, um direito subjectivo é " uma permissão normativa específica de aproveitamento de um bem"; ora, como é do senso comum, nunca o animal poderia fazer valer estes seus direitos, nomeadamente, á integridade física e, maxime, à vida. O Direito foi pensado pelo Homem e para o Homem, sendo um produto da sua Cultura, situada no Tempo,logo é a este que cabe definir quem são os sujeitos de direitos e quais são os objectos de direitos. Os animais gozam de uma "protecção indirecta" pois são tutelados pelo Direito ao Ambiente, constitucionalmente consagrado, na vertente de abstenção de lesão do meio ambiente a que todos estão adstritos.
Conexa com esta questão encontra-se o estatuto dos animais à face do direito civil português; de acordo com o regime vigente os animais são considerados coisas moveis, pela conjugação dos arts. 202º, n.º1, 205º, n.º1 e 212º, n.º3 do CC.; Contudo, a considera-los como coisas strictu sensu, chegaríamos á conclusão que são susceptíveis de apropriação, abandono, destruição,etc. Esta construção ignoraria, deste modo, as diferenças entre um animal e um simples pedaço de madeira, o que leva alguma doutrina estrangeira( alemã e austríaca) a considerá-los como " res sui generis", ou seja "uma categoria especial de objectos de direito"; podemos dizer que a nossa lei civil estabelece algumas distinções no regime das coisas, indicando ANDRÉ DIAS PEREIRA como exemplo o art.º1318º e o art.º 1323. No entanto,só a consagração expressa de um regime específico para os animais permitirá identificá-los como res sui generis , cabendo ao Legislador a tarefa de adaptar o regime jurídico dos animais a legislação especial desde já vigente, concedendo-lhes um estatuto adequado. Face ao quadro legislativo português verificamos um défice de regulação nesta matéria, contrário da actual tendência europeia, em que o regime de protecção dos animais apresenta implicações no campo do Direito da Família e das Sucessões e Direito Executivo, como acontece em França e na Suíça.
Em jeito de conclusão pode dizer- se que o recurso a normas programáticas, através de conceitos indeterminados só irá servir para dificultar a tarefa do Juíz, ao mesmo passo que introduzirá incerteza junto dos particulares, o que está relacionado com o carácter progressivo desta matéria, que carece de um melhor acompanhamento e técnica legislativa,
Neste ponto da situação, podemos encontrar argumentos para defender a ilicitude ou licitude do tiro aos pombos, dependendo do nosso ponto partida, o que aliás se reflecte numa jurisprudência inconstante.
Tiago Mateus ST1 nº13181

1 comentários:

  1. de.puta.madre disse...
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