Comentário ao Acórdão TC n.º 544/01 (REN)

1. Objecto do Acórdão

No acórdão em análise, é suscitada a questão da inconstitucionalidade formal, orgânica e material das normas constantes do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, que reviu o regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional (REN). Contrariamente ao pretendido pelo Recorrente, não é possível apreciar a conformidade constitucional de todas as normas constantes do referido Decreto-Lei. A decisão recorrida apenas aplicou as normas do artigo 17º, n.ºs 1 (em conjugação com o n.º 1 do artigo 4º e com a alínea d) do anexo II) a 6, do Decreto-Lei n.º 93/90, razão pela qual o objecto do acórdão se confina à apreciação da conformidade constitucional destas normas.

2. Inconstitucionalidade formal

No entendimento do Recorrente, não legislando ao abrigo de uma qualquer lei de autorização legislativa ou em referência à Lei de Bases do Ambiente (Lei nº 11/87, de 7 de Abril), o Decreto-Lei nº 93/90 padece de inconstitucionalidade formal, já que decretou a disciplina jurídica da Reserva Ecológica Nacional ao abrigo da al. a) do art. 201º da CRP (actual art. 198º), isto é, mediante um decreto-lei independente.

Sucede que, o n.º 3 do artigo 201.º da CRP não exigia que a invocação da lei de bases fosse feita num local preciso do diploma aprovado pelo Governo. Bastava que essa invocação fosse expressa, o que ocorreu no preâmbulo do diploma, quando se refere claramente “no seguimento do disposto no artigo 27.º da Lei de Bases do Ambiente”.

Além disso, a alegada errada indicação da alínea ao abrigo da qual o Governo exerceu a sua competência legislativa, aquando da aprovação do Decreto-Lei n.º 93/90, não gera inconstitucionalidade formal, redundando tal vício em mera irregularidade.

3. Inconstitucionalidade orgânica

O Recorrente invoca que o supracitado diploma legal e em particular os seus artigos 3.º, 4.º e 17.º enfermam de inconstitucionalidade orgânica por regularem matéria atinente a direitos, liberdades e garantias sem terem sido precedidos da necessária autorização legislativa da Assembleia da República, violando desse modo o artigo 165.º, n.º1, alínea b), e n.º 2, da CRP, por referência aos artigos 62.º e 17.º do diploma fundamental.

Segundo o Tribunal Constitucional, o Governo apenas necessitaria de autorização legislativa para estabelecer o regime da REN, se a Assembleia da República não tivesse aprovado, em data anterior, a Lei de Bases do Ambiente.

Ora, o Recorrente ignorou que este diploma surge no seguimento do disposto no artigo 27.º da Lei de Bases do Ambiente (como aliás resulta expressamente do preâmbulo). Trata-se, na verdade, de um Decreto-Lei de desenvolvimento daquela Lei, que se mantém dentro dos seus princípios fundamentais e que não dispõe sobre matéria abrangida na alínea b) do n.º 1 do referido artigo 165º, motivo pelo qual o vício invocado é improcedente.

4. Inconstitucionalidade material

O Recorrente advoga ainda que o regime da REN configura uma clara limitação do direito de propriedade, contemplado no art. 62.º da CRP.

O direito de propriedade, como direito constitucionalmente garantido, sujeito ao regime dos direitos, liberdades e garantias ex vi do artigo 17.º da CRP, não é um direito absoluto, antes comporta restrições necessárias à defesa de outros direitos e interesses com igual consagração constitucional. Haverá, pois, que conjugar o poder de gozo do bem objecto do direito de propriedade com uma das tarefas fundamentais do Estado, plasmadas na alínea e), do artigo 9.º, do texto constitucional: “Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território”.

De facto, hoje, o direito de propriedade está sujeito a limites intensos, sendo particularmente relevantes os que ocorrem no domínio urbanístico e do ordenamento do território, a ponto de se questionar se o direito de propriedade inclui o jus aedificandi (direito de construir) ou se este radica antes no acto administrativo autorizativo (licença de construção).

A discussão sobre se o jus aedificandi ou direito de construir faz ou não parte integrante do direito de propriedade privada tem motivado acesa polémica doutrinária. De um lado, encontramos Autores que integram o direito de construir no âmbito do direito de propriedade privada. Do outro lado, encontramos Autores que consideram que o direito em causa é concebido como uma faculdade conferida pela Administração através de um acto jurídico-público.

Segundo Alves Correia, a controvérsia caracteriza-se, muito sinteticamente, do seguinte modo: o direito de propriedade privada garantido constitucionalmente inclui, como suas componentes essenciais, o “direito” de urbanizar, de lotear e de edificar, estando apenas o exercício daqueles “direitos” dependente de uma autorização permissiva da Administração Pública? Ou, ao invés, aqueles “direitos” não se incluem na garantia constitucional da propriedade privada, sendo antes o resultado de uma atribuição jurídico-pública decorrente do ordenamento jurídico urbanístico, designadamente dos planos?

A tese dita privatista considera o jus aedificandi como um elemento da liberdade de utilização da propriedade garantida constitucionalmente, apresentando-se, por isso, como uma consequência directa do art. 62º, nº1, da Constituição. Revelam-se importantes no sentido da inclusão do jus aedificandi no direito de propriedade do solo os art. 1305º, 1344º, 1524º, 1525º e 1534º, todos do Código Civil.

A tese dita publicista nega a inclusão da faculdade de construção no conceito jurídico-constitucional de propriedade privada, vendo nela uma concessão jurídico-pública decorrente do sistema de atribuição do plano urbanístico. De acordo com Alves Correia, o vulgarmente designado jus aedificandi não é uma faculdade que decorre directamente do direito de propriedade do solo, antes é um poder que acresce à esfera jurídica do proprietário, nos termos e nas condições definidos pelas normas jurídico-urbanísticas, em particular pelos planos dotados de eficácia plurisubjectiva.

A jurisprudência constitucional tem sufragado a posição de que o direito de construir se encontra dependente de um acto de natureza jurídico-pública. Assim, no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 341/86 afirmou-se que “no direito de propriedade constitucionalmente consagrado contém-se o poder de gozo do bem objecto do direito, sendo certo que não se tutela ali expressamente um jus aedificandi, um direito à edificação como elemento necessário e natural do direito fundiário”. Nos Acórdãos nº 329/99 e nº 517/99, o mesmo tribunal reafirmou “que os direitos de urbanizar, lotear e edificar não fazem parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição”. Esta posição é também defendida no Acórdão sub judice.
Segundo o Tribunal Constitucional, quem entenda que o jus aedificandi não se inclui no direito de propriedade privada, há-de concluir que o Governo, ao editar as normas em apreciação, não invadiu a reserva parlamentar estabelecida na alínea b) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição, dado que não editou normas sobre o direito de propriedade privada.

Mais acrescenta que ainda que se entenda que os direitos de urbanizar, lotear e edificar assumem a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, há que reconhecer que não estão em causa faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição, pelo que o Governo, ao editar as normas em apreciação no presente recurso, não invadiu a referida reserva parlamentar. Pois, tal reserva abrange apenas as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos direitos análogos, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias.

A argumentação do Tribunal neste ponto suscita-nos algumas reservas. Julgamos que, para quem entenda que o direito de construir integra o direito de propriedade, qualquer restrição a este direito integraria a reserva de competência relativa da Assembleia da República.

Por um lado, e em síntese, quando se entenda que o jus aedificandi não faz, sequer, parte integrante do direito de propriedade, por não ser uma das faculdades em que ele se analisa, a proibição de construir num determinado solo, em que antes a edificação era possível, não se traduz nunca em qualquer compressão ou restrição de tal direito. Nessa medida, a sujeição a aprovação das operações de loteamento em certas áreas sujeitas ao regime transitório da Reserva Ecológica Nacional, se se entender que não traduz qualquer restrição do direito de propriedade, nem sequer coloca o problema da ofensa dos preceitos e princípios constitucionais apontados pelo recorrente.

Por outro lado, quando se entenda que o direito de construir é uma dimensão do direito de propriedade, as proibições de construção impostas pela Reserva Ecológica Nacional e, naturalmente, as limitações e condicionamentos por ela impostos ao direito de edificar, resultam da necessidade de resolver as situações de conflito entre o direito de propriedade e as exigências de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico.

De facto, o direito de propriedade, não sendo um direito absoluto e ilimitado, é condicionado pela necessidade de concretizar outros interesses públicos constitucionalmente protegidos, como seja o interesse ambiental. É, pois, necessário fazer uma ponderação casuística dos interesses em presença, à luz dos princípios da igualdade, justiça, proporcionalidade, prossecução do interesse público e boa administração.

Consideramos que as proibições de construção imposta pela REN e as limitações e condicionamentos que esta impõe ao direito de edificar, ainda que restrições ao direito de propriedade, são justificadas e conformes à tutela da propriedade privada e aos princípios constitucionais, não podendo, por isso, ser havidas como inconstitucionais.

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